Quem já não ouviu o verbo “reportar” em português? A globalização e a adoção de novas tecnologias trouxeram muitas coisas boas, inclusive a tradução automática. Inevitavelmente, porém, o mau uso desses recursos terminaram por introduzir traduções rudimentares e equivocadas no português. Um desses erros foi a forma como verteram o inglês “to report”: ao contrário do que muitos acreditam, esse falso amigo não significa “reportar” em português.
Às vezes, o uso incorreto de termos pode prejudicar a compreensão.
Falsos amigos
Já falamos brevemente sobre isso num artigo anterior. É normal encontrar, em idiomas diferentes, palavras que se assemelhem bastante, embora não signifiquem a mesma coisa. Na década de 90, os divertidos comerciais do CCAA ganharam fama, mostrando várias dessas “falsas amizades”. Eram situações em que brasileiros tentavam se comunicar com falantes de inglês ou espanhol e sempre terminavam se encrencando.
Isso acontece. Entre inglês e português, há muitas palavras categorizadas como falsos amigos. São termos que se parecem muito um com o outro, e costumam vir da mesma raiz. Porém, em algum momento, terminaram por divergir no significado, e hoje denotam coisas distintas, malgrado sua semelhança. É preciso ter muito cuidado com essas palavrinhas, por transmitirem um conteúdo bem diferente daquele que conhecemos. Em inglês, por exemplo:
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Actual: parece-se com “atual”, mas significa “verdadeiro, real”.
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Actually: da mesma forma, esse advérbio não significa “atualmente”, mas “na verdade”.
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Alias: não significa “aliás”, mas sim, “pseudônimo”.
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Cigar: não significa “cigarro”, mas “charuto”.
- Jurisdiction: parece-se muito com “jurisdição”, mas significa “competência”.
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To report: não significa “reportar” (remeter, dar por causa), mas sim “relatar”.
Em português
Um dos falsos amigos, portanto, equivocadamente traduzidos do inglês foi justamente o verbo “to report”, que não é a mesma coisa que “reportar”. Sim, este último verbo existe em português, mas carrega acepções bem diferentes, baseadas na noção de remeter.
Por exemplo, um de seus significados é o de “fazer voltar”, “mandar de volta” ou “retroceder”, como nesta frase:
Essa música sempre me reporta à minha infância.
Quer dizer, a canção “manda de volta” — remete — a pessoa de volta à infância.
Desta acepção de “remeter” temos outra relacionada: a de “dever-se a algo”. Por exemplo:
Reportava sua sorte ao afinco.
Por isto, quer-se dizer que remetia sua sorte ao afinco, vale dizer, a “sorte” que tinha, em verdade, devia-se ao trabalho duro. É o mesmo caso de:
Reportou as boas notas da escola ao estudo diário com a mãe.
Em outras palavras, as boas notas da escola deviam-se ao fato de ter estudado com a mãe todos os dias. Assim como, no exemplo anterior, a “sorte” que tinha se devia, em verdade, ao trabalho duro. É outro modo de dizer “dar como causa”.
Também é possível utilizar a acepção de “remeter” com o significado de “fazer alusão a”, neste sentido:
Não parava de reportar os ouvintes ao mesmo assunto.
Quando nos reportamos a um assunto, estamos nos referindo a um assunto, quer dizer, estamos remetendo nossos ouvintes a um assunto específico.
Por fim, existe ainda outro sentido, muito menos utilizado em português, que é o de “conter, atenuar, controlar”. Por exemplo:
Lutou, debalde, para reportar a forte emoção.
No exemplo acima, quer-se dizer que a pessoa se esforçou (em vão) para conter a emoção; que tentou refrear, controlar o que sentia, mas que, por fim, não conseguiu.
Assim, o significado de “reportar” em português não é o mesmo de “to report” (relatar) do inglês. Por isso, seu uso desta forma é equivocado.
Aliás, o próprio substantivo “report” significa “relato, relatório”:
I will submit my report today.
Vou entregar meu relatório hoje.
Ninguém utiliza “vou entregar minha reportagem hoje”. Da mesma forma, o verbo: não devemos dizer “reportar”, mas sim, “relatar”.
Eles se parecem, mas não são a mesma coisa.
Num passado distante
Os significados que hoje temos em português assemelham-se àqueles de nossa língua-mãe, o latim. A palavra vem da união de “re-” com o verbo “portare”.
A partícula “re-” é velha conhecida nossa, encontrando-se em palavras como “refazer” (fazer de novo), “retocar” (quando “tocamos de novo” algo já finalizado, é porque desejamos corrigi-lo ou aperfeiçoá-lo), “reaprender” (aprender de novo) e por aí vai.
Já o latim “portare” significa isso mesmo que você está pensando: portar, carregar, levar. Ou seja, em latim, “reportar” significava “levar novamente, carregar novamente” ou “voltar novamente, retroceder novamente”. Por exemplo:
Lautusque ad hospitium Milonis ac dehinc cubiculum me reporto.
(E, já arrumado, volto à casa de Milo e vou-me novamente [me re-porto] para o quarto.)
— Apuleio, Metamorfoses, I.25 (última linha).
Ou seja, “me reporto” aqui tem o sentido de “porto a mim mesmo de volta”, “porto, carrego, levo meu próprio corpo” de volta ao quarto.
Outro exemplo:
Saepe oleo tardi costas agitator aselli vilibus aut onerat pomis, lapidemque revertens incusum aut atrae massam picis urbe reportat.
(Além disso, frequentemente, o carroceiro carrega os flancos do burrico, que já é lerdo, com óleo ou frutas baratas; e, ao voltar da cidade, traz [de volta; porta de volta — re-porta] consigo uma pedra de afiar incusa ou uma massa de piche negro.)
— Virgílio, Geórgicas, I.273-275.
Aqui, Virgílio diz que o carroceiro “reporta” (“traz/porta de volta”) à aldeia coisas adquiridas na cidade.
É do sentido de “portar novamente” que proveio o sentido de “remeter” (portar/mandar de volta) que temos em português.
Do you speak English French?
O português, por ser um desenvolvimento do próprio latim, herdou deste a palavra “reportar”. Já o inglês — uma língua germânica — adotou “report” a partir do francês (de onde vieram muitíssimas das palavras latinas que perduram no idioma até hoje).
Inicialmente, em francês, o verbo “reporter” (reportar, remeter, levar de volta) significava o mesmo que em suas línguas irmãs:
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Português: reportar
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Espanhol: reportar
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Italiano: rapportare
Porém, por volta de 1260, o vocábulo ganhou o sentido alternativo, na língua francesa, de “redire” (recontar, relatar) 1, que foi justamente a acepção que se solidificou no idioma inglês, ao incorporar a palavra proveniente do francês. Desde então, o inglês “to report” significa “relatar”. É desse novo significado, à propósito, que vem o português “repórter” (aquele que relata), oriundo do inglês “reporter”. Se olharmos com cuidado, veremos que só fizemos mesmo adicionar à palavra um acento agudo. É um calque tão direto que mantivemos até o morfema “-er” do inglês (teacher, lawyer, maker, reporter).
Conclusão
É fácil observar que o inglês “to report” e o português “reportar” se parecem muito. À primeira vista, tendemos a achar que são equivalentes. Porém, é importante ter em mente que são falsos amigos e não significam a mesma coisa.
No mundo globalizado atual, traduções de parca qualidade introduziram, no português, o termo “reportar” como sinônimo do cognato inglês. Isso terminou por se imiscuir em nosso cotidiano, e a palavra vem sendo usada com frequência em quase todo lugar, desde programas de GPS como o Waze (“radar reportado à frente”) até o discurso de atendentes (“se tiver qualquer problema, você pode estar me reportando”).
Muitas vezes quando tentamos “falar bonito”, caímos na armadilha de usar acepções provenientes de línguas estrangeiras (atualmente, o inglês), sem sabermos que não são naturais do português. Por exemplo, quando dizemos “reportar” em vez de “relatar”, ou quando usamos o gerundismo (“estarei te enviando”), isso é uma tentativa de manifestar a nosso interlocutor que estamos utilizando um diálogo mais formal. Afinal, ao falarmos com um cliente, desejamos tratá-lo com respeito.
Isso acontece porque associamos a formalidade a construções linguísticas mais incomuns do idioma — afinal, o que usamos no dia a dia é geralmente informal. Logo, formas incomuns no português equivaleriam à norma culta. Essa lógica não está errada, mas em alguns casos (e este é um deles), ela esbarra em uma grave problemática: a de que essas formas (“reportar”, gerundismo) são incomuns apenas porque realmente não fazem parte da língua portuguesa. Foram importadas forçosamente do inglês por maus tradutores e/ou por traduções automáticas, como o Google Tradutor (e, mais frequentemente, por “inteligências” artificiais como ChatGPT, Claude e outros).
Infelizmente, há muitíssimos casos em que empresas, na tentativa de baratear custos, utilizam-se de inteligência artificial, ou até de tradutores humanos que não são falantes nativos de português (infelizmente, isso acontece muito mais do que você imagina). Consequentemente, o Brasil recebe um enorme fluxo de material do exterior com péssima qualidade em nosso idioma.
Uma vez aqui no Brasil, por sua vez, como não temos um ensino de qualidade, tomamos essas traduções como sendo a tal norma culta. Os mais afetados são precisamente a camada mais humilde da população — ironicamente, a mais carente de traduções de alta qualidade. Ora, a camada mais humilde é a que menos teve (acesso à) educação, e justamente a que está na linha de frente dos textos com qualidade medíocre. Pior: sem jamais terem sido expostos ao alto padrão de uso da língua, exatamente pela rasa escolaridade. Sem um parâmetro sólido de comparação (p. ex., “não era assim que Machado e Alencar se expressavam — essa construção não é normal na língua culta do português”), tomaram abertamente para si essas traduções mal feitas, acreditando que eram de alta qualidade. E os erros terminaram incorporando-se ao português.
A partir de agora, porém, você já sabe que “reportar” não significa “relatar”, mas “remeter” (“relatar” é o significado do inglês “to report”). E já pode substituir frases como:
- Reporte o erro encontrado
- Vou reportá-lo ao supervisor
- Ele me reportou o que aconteceu
- Vamos reportar o ocorrido
- Estão reportando o caso na TV
por (por exemplo):
- Informe o erro encontrado
- Vou dar queixa a meu supervisor
- Ele me comunicou o que aconteceu
- Vamos relatar o caso
- Estão noticiando o caso na TV
Este segundo conjunto de frases traz formulações mais naturais ao português, ao contrário das traduções formulaicas e incorretas utilizadas no primeiro quinteto de exemplos.
Portanto, da próxima vez em que bater a vontade de dizer “reportar” no sentido de “relatar”, é só utilizar “relatar, informar, comunicar”, ou até “dizer, narrar, contar”.
Referências
- Récits d’un ménestrel de Reims, séc. XIII s., éd. N. de Wailly, § 114.[↩]


Prezado Haggen Kennedy, adorei o seu texto e agradeço-lhe pela riqueza de esclarecimentos. Um grande abraço. Reginaldo, de São Paulo/SP.