Presidente ou presidenta?

26 Apr 2012 | Norma culta

Presidente ou presidenta?

Uma das dúvidas de português que bastante pareceu assolar os brasileiros (e, por conseguinte, uma das perguntas que mais recebi) durante o governo Dilma referia-se ao uso de “presidente” ou “presidenta“. Qual das duas formas estaria correta? Resposta curta: as duas formas estão corretas. Resposta longa? Respire fundo e continue lendo.

 

 

O começo

Para responder de forma satisfatória, a primeira coisa que devemos fazer é descobrir de onde veio a palavra. O português é um desenvolvimento do latim, e é deste idioma que vem “presidente”.

Em latim, “praesidens/praesidentis” é o particípio presente do verbo “praesidere” (“presidir”). Repitamos: um particípio. Daí ter vindo para o português também na mesma forma participial.

Cumpre dizer que, em latim, a palavra existe também na forma de adjetivo. No masculino, o adjetivo masculino é praesidentum. O particípio é praesidens (no nominativo), praesidentis (no genitivo). Foi a construção genitiva que veio ao português — se tivéssemos herdado a forma adjetiva, teríamos “presidento“, e não “presidente“. Afinal, a terminação “-um“, dos substantivos e adjetivos latinos, vira “-o” em português. A fórmula é bastante regular:

LATIM
forum
templum
exemplum
momentum
præsidentum
PORTUGUÊS
foro
templo
exemplo
momento
presidento

Como podemos ver, a forma herdada no português não veio dos moldes do substantivo/adjetivo, mas sim do particípio praesidentis > presidente. De fato, o termo sequer sofreu grande mudança. Apenas simplificamos o ditongo “ae” para “e” e trocamos a terminação “-is” por “-e”. Inclusive, a palavra continua sendo pronunciada como se carregasse o mesmo “-i” final na maioria dos estados brasileiros. Ou seja, no desenvolvimento da palavra do latim ao português, na prática, basicamente cortamos o “s” final: presidentis > presidênti.

O poder do particípio

Se imaginarmos o particípio presente latino como um super herói, seu poder é transformar verbos ativos em substantivos e/ou adjetivos.

“Transformar verbos em substantivos?”, você pergunta. “Como funciona isso na prática?” Simples: se tomarmos o verbo latino “laudare” (laudar, em português) e lhe aplicarmos a flexão do particípio presente, ele se transformará em “laudans, laudantis” (aquele que lauda: “laudante“). Ou seja, é como se o particípio desse um nome a quem pratica o verbo. Se o verbo é “palestrar”, o nome de quem pratica esse verbo (quem realiza palestras) é “palestrante“.

A fórmula do particípio ativo em latim deu origem às formas portuguesas:

  • -ante (mendicante)
  • -ente (presidente)
  • -inte (contribuinte)
  • -unte (transeunte)

São formas comuns a basicamente todos os idiomas que provieram do latim, como é caso (além do português) do espanhol, do italiano e do francês (chamadas de línguas neolatinas).

O interessante é que, no latim, essa forma de particípio presente, atuante sobre verbos ativos, simplesmente não muda — seja no masculino, feminino e neutro (o latim tinha três gêneros, ao contrário do português, que só tem dois). Isso se reflete mais ou menos numa outra fórmula: de modo geral, palavras terminadas em “-e” são “neutras”, no sentido de que podem ser masculinas ou femininas, dependendo do uso dos falantes em determinada época.

Palavras “neutras”

Note que “neutras” vem entre aspas. Isso acontece porque estamos aqui utilizando a palavra de forma leiga. Por “neutro” não queremos dizer que as palavras (em latim, em português e nas demais línguas neolatinas) não tenham gênero. Todos os substantivos têm gênero. Neste artigo, especificamente, utilizamos o termo “neutras” unicamente no sentido de que palavras terminadas em “-e” podem vir a tomar, nas línguas neolatinas, o gênero masculino, em alguns casos; ou o gênero feminino, noutros casos.

Por exemplo, às vezes, palavras terminadas em “-e” podem adotar qualquer dos gêneros no mesmo idioma:

  • o agente, a agente
  • o intérprete, a intérprete

É o que chamamos de substantivo comum de dois gêneros, ou simplesmente “comum de dois”. A mesma palavra é empregada em ambos os casos, e utilizamos o artigo para especificar o gênero da pessoa a quem nos referimos.

Em outros casos, um idioma adota um gênero específico, e outro idioma (também neolatino) inventa de adotar o gênero oposto. É o caso de “o leite” (masculino) em português, mas “la leche” (feminino) em espanhol. Já “el puente” é masculino em espanhol, mas feminino em português (“a ponte“). É prova de que palavras terminadas em “-e” podem cair para qualquer lado (masculino ou feminino). A escolha é mais ou menos arbitrária, dependendo do uso por dada população com o passar do tempo, e a escolha termina se solidificando no idioma em questão.

Conclusão

Palavras em português com terminações de particípio (-ante, -ente, -inte), por advirem de uma forma participial na língua-mãe (latim), mantiveram a mesma estrutura de particípio da língua-filha (português). Lembrando que o particípio presente não muda de gênero.

Visto que essas formas de particípio atuam sobre verbos ativos (amar, arder, contribuir), formando adjetivos e substantivos (amante, ardente, contribuinte), convencionou-se chamar esta estrutura de “particípio ativo“. Por isso, o verbo “falar” tem a forma participial ativa “falante“; o verbo “crer” tem a forma participial ativa “crente“; o verbo “constituir” tem a forma “constituinte“. Perceba que todas essas formas levam a forma masculina e feminina iguais:

    1. o amante, a amante;
    2. o crente, a crente;
    3. o constituinte, a constituinte.

De forma resumida, isso significa que, sendo formas de particípio (-ante, -ente, -inte) terminadas em “-e“, a forma no português, assim como em latim, é imutável, valendo para palavras tanto no masculino quanto no feminino. Por isto, defendemos aqui o uso de “(o/a) presidente“, independentemente do sexo de quem preside.

Abaixo, algumas das perguntas mais frequentes (F.A.Q.) sobre o tema. 

1. Já ouvi várias pessoas dizendo que, assim como “doutor”, “juiz” e “professor” admitem as formas femininas “doutora”, “juíza” e “professora”, também deveríamos adotar “presidenta”. Não seria discriminação adotar só a forma “presidente”? Afinal, dizemos “brasileiro” e “brasileira”.

Observe que nenhuma das formas citadas (doutor, juiz, professor, brasileiro, brasileira) possui terminação participial (-ante, -ente, -inte). São todas formas de puro substantivo/adjetivo — e não de particípio, portanto, não se confundem. Também no latim as profissões citadas acima aceitavam o feminino. A única construção que quebra uma regra gramatical da norma culta é a transformação de “-ente” em “-enta“. É uma violação das regras gramaticais porque algumas formas, como advérbios e particípios ativos, são imutáveis quanto ao gênero, tanto em latim quanto em português. Ou deveriam ser.

2. Mas já vi exemplos com “o chefe” e “a chefa”.

A palavra “chefe” pertence à chamada categoria “substantivo comum de dois gêneros”, ou simplesmente “comum de dois”. A terminação em “-e” torna desnecessário alterar a estrutura da palavra, de modos que não lhe é preciso impor a terminação feminina “-a” (afinal, não possui a terminação masculina comum em “-o”). Assim, “a chefa” deve ser evitado, utilizando-se a mesma forma no masculino e no feminino, empregando-se apenas o artigo correto para especificar o gênero do chefe (“o” para masculino, “a” para feminino):

  • o chefe
  • a chefe

Contudo, perçeba que, mesmo neste exemplo, em que “chefe” termina em “-e”, ainda não estamos tratando de uma terminação em particípio (que, neste caso, seria “chefiante“). Consequentemente, as formas “chefe” e “presidente” ainda não podem ser comparadas (pois uma tem forma de substantivo/adjetivo, enquanto a outra tem forma de particípio).

Em suma, a palavra “chefe” já traz em si mesma a possibilidade do uso de dois gêneros. É desnecessário modificar a palavra. Dito isto, pior seria modificar o particípio: alguém diria “chefianta“? “A chefianta é muita confianta“? Se ninguém (nem mesmo Dilma) diz “ela é muita persistenta“, por que usar “presidenta“? A regra é a mesma nos dois casos.

3. Mas já cansei de ver “cruenta”. Deveria ser “cruente”, então?

Não, porque “cruento” não é um particípio. A palavra vem do latim cruentus no masculino (cruenta no feminino, cruentum no neutro). Ou seja, a palavra é um adjetivo, não um particípio.

Como regra, substantivos geram adjetivos variáveis, que ganham o gênero da pessoa a quem se referem. Por exemplo:

  • calor: calorento / calorenta

  • frio: friorento / friorenta

  • sangue: sangrento(a) / cruento(a)

  • sarna: sarnento / sarnenta

Mas verbos geram formas participiais invariáveis, cujo gênero não muda:

  • amar: amante (quem ama — gênero invariável)

  • informar: informante (quem informa — gênero invariável)

  • ler: lente (quem lê — gênero invariável)

  • tenere (ter): tenente (quem tem, quem administra, quem está à frente de — gênero invariável)

  • concluir: concluinte (quem conclui — gênero invariável)

  • transitar: transeunte (quem transita — gênero invariável)

Ou seja, a forma participial ativa gera um nome para quem realiza a ação do verbo. No verbo “falar”, o particípio ativo cria um nome para quem fala: falante. A confusão acontece porque as formas adjetivas às vezes se parecem muito com as participais — da mesma forma que caro e calo em português se parecem muito para o falante nativo de chinês ou japonês. Mas é só como Denorex: parece, mas não é.

O importante aqui é compreender que substantivos e adjetivos comportam-se de uma forma; advérbios e particípios ativos, de outra. Por exemplo, em português, a palavra “muito” pode ser variável ou invariável, a depender da função  que exerce na frase. Se for advérbio, é invariável. Se for outra coisa (substantivo, adjetivo, pronome), é variável. Na frase “ele tem muitos carros”, vemos que “muito” pode variar a depender do substantivo: muitos carros, muitas casas. Porém, na frase “ele é muito bonito”, a palavra “muito” é invariável, porque age como um advérbio. Isso enseja certa confusão para o aluno brasileiro, quando tenta aprender outros idiomas que, ao contrário do português, diferenciam os dois casos. Embora as palavras sejam iguais em português, elas são diferentes em muitas outras línguas:

PORTUGUÊS
ESPANHOL
FRANCÊS
ROMENO
INGLÊS
Substantivo/Adjetivo
muito
mucho
beaucoup
mult
many
Advérbio
muito
muy
très
foarte
very

Com a tabela, fica mais fácil entender por que, ao dizermos “muitos carros” e “muito alto“, corremos o risco de imaginar que “muito” seja igual nos dois casos, como se desempenhasse a mesma função morfológica. Porém, o espanhol “muchos coches” e “muy alto”, como também o inglês “many cars” e “very tall”, prontamente nos mostram que em “muitos carros” temos um adjetivo (masculino plural);e em “muito alto“, um advérbio (invariável: muito altos, muito altas). As coisas, portanto, não são exatamente o que parecem. O mesmo acontece com “pouco” e “quase”, invariáveis quando atuam como advérbios. Daí construções como “muito bonita“, em que “muito”, operando como advérbio (invariável), não se flexiona de acordo com o feminino “bonita”. O mesmo acontece com os particípios ativos potente, determinante, coerente… e presidente. Essas categorias morfológicas não mudam de gênero.

As formas de substantivo/adjetivo, de um lado; e de particípio, do outro, são um pouco como irmãos gêmeos: parecem-se muito do lado de fora, mas, por dentro, cada um se comporta da forma que lhe é peculiar.

4. E por que dizemos “elefanta”, então?

Porque “elefante” não é uma palavra latina. É grega: ἐλέφας, ἐλέφαντος (eléphas no nominativo; e eléphantos no genitivo, que foi a forma herdada por nosso idioma). Sendo um substantivo grego, não se confunde com o particípio latino (que determina a regra de “presidente”). Vale lembrar que a forma feminina “aliá” também está correta. E cabe mencionar que a palavra “elefoa”, apesar de ainda muito usada, não é aceita por nenhum dicionário nem gramático de peso.

5. Como se explica a Lei nº 2.749/56?

Como essa lei é bem pequena, podemos nos dar ao luxo de transcrevê-la aqui na íntegra (mas o artigo mais importante é o primeiro):

LEI Nº 2.749, DE 2 DE ABRIL DE 1956

Dá norma ao gênero dos nomes designativos das funções públicas

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art 1º. Será invariavelmente observada a seguinte norma no emprego oficial de nome designativo de cargo público:

“O gênero gramatical desse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consagrados na lexeologia do idioma. Devem portanto, acompanhá-lo neste particular, se forem genericamente variáveis, assumindo, conforme o caso, eleição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões pronominais sintaticamente relacionadas com o dito nome”.

Art 2º. A regra acima exposta destina-se por natureza às repartições da União Federal, sendo extensiva às autarquias e a todo serviço cuja manutenção dependa, totalmente ou em parte, do Tesouro Nacional.

Art 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 2 de abril de 1956; 135º da Independência e 68º da República.

JUSCELINO KUBITSCHEK

Nereu Ramos

Por vezes, essa lei é apontada como fundamento da forma “presidenta”. Uma breve análise do normativo, porém, não parece sustentar essa tese. Aqui, a hermenêutica há de nos auxiliar, muito embora não precisemos nos aprofundar muito. Vejamos.

Em português, a formação dos gêneros segue uma regra simples. Ela dispõe que o masculino é o termo não marcado; o feminino, o termo marcado.

O que isso significa? Simplesmente, que a forma “de fábrica” (ou seja, não flexionada) do português geralmente é a que está no masculino; a forma flexionada, a do feminino. Ou seja, quando se vai ao dicionário buscar um substantivo (nome) ou adjetivo, é necessário procurá-lo no masculino, pois esta é a forma padrão, “default” (e o motivo de ser assim é papo para outro artigo, a ser escrito em breve).

Mas o que tudo isso representa para o legislador e para os nomes dos cargos públicos? Basicamente, que, como regra, são listados na forma não marcada, padrão (ou seja, no masculino). A consequência disso é que correríamos o risco de imaginar que no serviço público existiriam apenas procuradores, auditores, consultores, capitães, médicos, advogados, juízes, sempre no masculino (sendo que existem também procuradoras, auditoras, capitãs, médicas, advogadas, juízas). Daí a Lei nº 2.749/56 determinar que o gênero gramatical do nome do cargo deva acompanhar o sexo do funcionário a quem se refira. Ou seja, o objetivo é fazer menção ao gênero feminino quando o funcionário público for deste gênero, para evitar não apenas a discriminação, mas a própria inconsistência gramatical daí resultante. Afinal, não faria sentido usar o masculino “advogado” para se referir a “Maria Luíza” nos autos. Portanto, quando determinada mulher exercer o cargo de juiz, lei, regulamento ou documento oficial que porventura disponha sobre ela, deverá conter a palavra no feminino: “juíza Fulana“, e não “juiz”.

Perceba que a lei não cria a palavra “presidenta”, nem defende seu uso. Ela (a lei) simplesmente diz que, para as palavras que aceitem a forma feminina, sejam usadas essas formas (femininas), quando se fizer referência a mulheres em cargos públicos. É o caso de todas as palavras acima, que são de formação substantiva/adjetiva, e não de particípio: auditor, advogado, juiz, médico (etc.) não possuem terminação -ante, -ente, -inte; por isso, admitem a forma feminina. “Presidente”, que possui a terminação –ente e não varia de gênero, não se inclui na lista anterior; portanto, não estaria abarcada pela lei. Em outras palavras, não foi a vontade do legislador (interpretação teleológica da lei) dizer que “presidenta” existe e deve ser usada.

Não bastasse isso, a lei dispõe que a forma feminina dos cargos deve obedecer a preceitos:

  • tradicionais do assunto; e
  • consagrados na lexeologia do idioma.

“Preceitos tradicionais e consagrados”. Em outras palavras: a formação do feminino deve obedecer a norma culta. Esse requisito é tão importante que a lei chega a repetir o comando, ao dispor, logo depois: “[os cargos] devem [ir para o feminino] se forem genericamente variáveis“. Neste sentido, “presidente”, por ser uma forma de particípio ativo terminada em “-ente”, não é variável; logo, não se deve flexionar. Assim, manter o vocábulo “presidente”, rejeitando “presidenta”, está em total conformidade com a lei.

6. Que saco! “Presidente” é um machismo e ponto final. A palavra “presidenta” deve ser sempre usada quando se tratar de pessoa do sexo feminino.

Na verdade, é o contrário. Por isso, gastei tanto tempo explicando a origem da palavra e corri o risco de fazer você, leitor, perder a paciência quando discorri sobre substantivos, adjetivos, particípios e outras baboseiras gramaticais. O fato é que “presidente” já é, precisamente, a fórmula mais neutra e politicamente correta que existe. “Presidente” não é machismo. Não pode ser, porque nela não há marca de masculino. Para haver, a palavra teria que ser “presidento”, construção adjetiva que facilitaria a possibilidade de construir-se a forma feminina “presidenta”. 

Não é o caso de “presidente“, que leva uma forma de particípio, e não de adjetivo (presidento/a). Daí eu ter explicado que formas terminadas em “-e” no português são, por natureza, “neutras”. Elas podem ser usadas tanto no masculino quanto no feminino. E o melhor: não possuem marca de nenhum deles.

Em português, a forma do masculino geralmente1 é feita com o “-o” final (“brasileiro“); a forma feminina, com o “-a” final (“brasileira“). “Presidente”, que — mais até do que só em “-e” — termina em “-ante”, não possui forma de masculino nem de feminino (por apresentar forma de particípio ativo). É, portanto, por si só, a forma já mais politicamente correta que poderiam inventar. De fato, se só tivéssemos as palavras “presidento” e “presidenta” em português, é possível que viessem a inventar “presidente” para soarmos mais neutros. Se já temos justamente esta palavra, por que insistir em não a usar? Teremos que dizer agora “a marinha mercanta“? “Ela é uma pessoa muita consistenta“? “É uma marca determinanta“? “A matéria é pouca relevanta“? Quem for ao banco precisará abrir uma “conta correnta”? A cidade paulista deverá passar a se chamar “Presidenta Prudenta“? A mudança parece causar mais problemas do que os resolve. Há uma infinidade de advérbios e particípios invariáveis que utilizamos diariamente sem a mínima preocupação, e isso não produz qualquer efeito sobre nossa constituição sexual. De fato, jamais conheci motorista que se sentisse mais ou menos efeminado apenas por sua profissão terminar em “-a“; nem uma soprano que se sentisse masculinizada pela profissão terminar em “-o“. É preciso tomar cuidado para não confundir o gênero gramatical da linguística com o sexo humano da biologia. Eles não são a mesma coisa.

7. Então “presidenta” realmente está errado? 

Não. Deveria estar. Levando-se em consideração todas as regras não só do português, mas de sua língua-mãe, o latim, “presidenta” é uma anomalia morfológica que, em teoria, não deveria existir. No entanto, existe. Existe porque as pessoas falam a palavra. E a língua, apesar de ser regida por normas gramaticais, no final das contas, ainda é determinada pela boca do falante. É impossível “aprisionar” um idioma — não o conseguiriam os livros de gramática, nem os próprios gramáticos, nem quem acha que deveria ser de um jeito, enquanto é de outro. A língua é/está viva, e o uso do falante termina por moldá-la. A criatividade popular deu origem a uma nova forma (presidenta), que terminou por se integrar ao léxico (mesmo nunca havendo existido esquisitices como comedianta, cartomanta, aspiranta, intérpreta). Para espelhar o fenômeno cultural, a forma passou a ser aceita pelos gramáticos Celso Cunha, Evanildo Bechara e Luís Antônio Sacconi. Os dicionários Aulete, Houaiss, e o tradicional Aurélio já trazem o verbete em suas páginas. Até Domingos Paschoal Cegalla já admite que “presidenta é forma correta e dicionarizada, ao lado de presidente“. De modos que, hoje, ambas as formas são aceitas, e tudo fica, mesmo, a gosto do freguês. 

Entretanto, cabe aqui uma consideração, pois “presidenta” traz uma problemática inesquivável: a defesa da palavra com base na tese de machismo é discriminatória às avessas, já que não existe forma masculina para o vocábulo. Neste sentido, o efeito obtido é o oposto do desejado, por, ao menosprezar termo mais neutro e justo, introduzir um cisma2 no idioma. De fato, arrisco-me a dizer que ninguém jamais olhou para uma corrente e concluiu que precisaríamos chamá-la de “correnta” para evitar o machismo. O artista deveria indignar-se com a denominação, modificando-a para evitar a discriminação contra o masculino? Devem-se alterar também todos os advérbios e demais construções que não sejam conforme o que se deseja politicamente? Se correntes políticas opostas desejarem formatos diferentes, quem decide a forma que deve prevalecer? É perigoso confundir gramática com biologia.

Em face de tudo isso, e já como conclusão final, convido todos a considerar uma (importante) observação: se a língua é moldada por seus falantes, isto fatalmente significa que você, leitor, em sua própria capacidade de falante do idioma, também tem “a força” (para maior efeito dramático, sinta-se à vontade para ouvir na cabeça a musiquinha de He-Man ou de She-Ra). A vida é feita de escolhas, e a criatividade humana tem seu lugar, como também o tem a norma culta. Salvo em situações muito específicas, a forma “presidenta”, a exemplo de “chefa”, não nos parece trazer benefícios linguísticos nem culturais, a não ser de efeito cômico. Por isso, defendemos o uso de “presidente” no dia a dia. Se esta for também sua escolha, então quanto mais falantes utilizarem “presidente”, e menos falantes utilizarem “presidenta”, mais esta última forma cairá em desuso. Isto fará com que os falantes mais novos, por sua vez, sejam expostos à primeira palavra, aprendendo, sem esforço, um modo melhor e mais elegante de comunicar as ideias.

Não é que “presidenta” seja um mal tão grande — ninguém morrerá disso, e se algo tiver que lhe tirar o sono, melhor que seja por questões realmente importantes (como a saúde) do que pela preocupação com um reles vocábulo. Não se trata disso. É simplesmente que, a nosso ver, o termo comum (“presidente”) parece ser uma forma muito mais desejável de se perpetuar. Afinal, homens e mulheres, independentemente do sexo, podem ser intérpretes, mártires, clientes, consortes, médiuns, estudantes, confiantes, bendizentes, maledicentes, acachapantes, reconfortantes… e também presidentes. Consideramos desnecessário impor a criação de um feminino artificial a certas palavras que não apresentam qualquer semblante masculino. Essa invejável força criativa poderia ser utilizada em áreas outras, mais carentes do maravilhoso engenho humano.

Referências:

  1. Frise-se: geralmente. Há, óbvio, exceções.[]
  2. Por que “cisma” aqui é masculino? Esse artigo, um dia, virá.[]
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