Você provavelmente já (ou)viu a frase “pensar fora da caixa”. A expressão, que provém do inglês e significa “pensar fora dos padrões convencionais”, na verdade é um estrangeirismo.
É fácil observar que se trata de um estrangeirismo ao realizarmos um simples exercício: se perguntarmos a um falante nativo de português o significado dessa tal “caixa”, o mais provável é que ele pense, literalmente, em uma caixa:
Caixa: seria esta a tal “box”?
Essa é a primeira pegadinha. Um dos sinais de que a expressão “pensar fora da caixa” é um estrangeirismo deve-se ao fato de que nossa noção de “caixa”, em português, é um pouco diferente da noção de “box” em inglês.
Vamos chegar lá. Mas, para entendermos tudo isso melhor, é preciso antes conhecer a origem da expressão.
Origem
A forma da expressão, como hoje a conhecemos, provém do antigo exercício de unir 9 pontos com linhas retas. O mesmo passatempo que viemos a conhecer ainda na infância:
Jogo de unir os nove pontos com uma única linha.
Esse joguinho tornou-se muito popular nos EUA em meados de 1900, e muitas revistas e jornais incluíam o exercício em suas edições.
Assim como na imagem acima, o exercício, nesses periódicos, trazia os pontos delimitados por um quadrado externo. A grande pegadinha estava justamente na regra: “ligue os pontos com 4 (ou menos) linhas retas, sem levantar a caneta do papel”. O bom entendedor percebia que não havia qualquer menção à delimitação (ou seja, ao quadrado) exterior. A solução, portanto, era desprezar as bordas da imagem, pautando deliberadamente sobre elas as linhas traçadas.
De fato, mesmo nos casos sem quadrado fisicamente demarcado — como nos desenhos que, quando crianças, fazíamos em folhas de papel —, tendemos a visualizar a delimitação de forma abstrata. O quadrado é criado mentalmente (e involuntariamente, de forma inconsciente) pela disposição organizada dos pontos. É como uma ilusão de ótica:
Ilusão de ótica: 3 ou 4 extremidades?
Em 1969, para ensinar a resolver o problema, Norman Vincent Peale, em artigo do Chicago Tribune (ed. 25/10/1969, p. 13) instrui:
Step outside the box your problem has created within you and come at it from a different direction.
Ou seja, era necessário extrapolar os limites do quadrado criado pelo problema, atacando-o a partir de uma perspectiva diferente. Pois o problema dos 9 pontos cria mentalmente em nós uma delimitação (o quadrado). Para solucioná-lo, é preciso enxergar as coisas de forma objetiva, sem os bloqueios mentais que nós mesmos criamos.
Com o passar dos anos, frases como “think outside the dots” (pense fora dos pontos) e “think outside the box” (pense fora do quadrado) foram sendo mais e mais utilizadas. De fato, tornaram-se tão comuns que, em 1976 (na Inglaterra) e em 1978 (nos EUA), elas já eram utilizadas em outros contextos, de forma desassociada ao jogo. Ou seja, terminaram por se integrar à cultura dos países de língua inglesa.
Aqui, percebemos dois elementos importantes: em primeiro lugar, a efetivação de um processo de integração da expressão à própria cultura inglesa; e, em segundo, o fato linguístico envolvendo uma nuance específica da palavra “box”. Esta, em inglês, possui conotação mais ampla que em português, englobando também formas bidimensionais. Enquanto “caixa”, em português, possui aspecto tridimensional (3D — vide a primeira imagem deste artigo), o “box” inglês pode muito bem ser 2D. De fato, é comumente utilizado nesse sentido, diferentemente do português.
Para ilustrar essa diferença, façamos outro pequeno exercício: se momentaneamente colocarmos de lado o inglês e pensarmos só em português, como um falante de nosso idioma se referiria às linhas pretas que delimitam cada uma das cenas nos quadrinhos abaixo?
Quadrinhos do Homem-Aranha
O próprio nome (quadrinhos) já dá a ideia do que o falante de português diria. Cada uma dessas cenas são envoltas por “quadrados” (ou “retângulos”), talvez até “painéis”. Certamente, o falante nativo de português, sem influência externa e utilizando o arcabouço exclusivo do próprio idioma, jamais chamaria esses traçados de “caixas”. Ao contrário do inglês, cujo falante nativo prontamente diria “boxes”, e não “squares” (quadrados).
Exatamente a mesma coisa acontece com as seções demarcadas por quadrados nos jornais:
Como também acontece com o quadrado em volta dos nove pontos. Em português, “quadrado”; em inglês, “box”:
Para traduzir, basta trocar as palavras
Muitos têm a impressão (errônea) de que, para traduzir, basta trocar as palavras de um idioma por palavras no outro idioma:
| The | pen | is | blue |
| A | caneta | é | azul |
É uma visão simplista do processo de traduzir. Basta mudarmos a frase para “the blue pen” para derrubar a tese:
| The | blue | pen |
| A | caneta | azul |
Neste exempo, já não há mais correspondência direta com o português: é necessário inverter a ordem das palavras (afinal, ninguém diz “a azul caneta”). Da mesma forma, na expressão (muitíssimo comum) “there’s no ‘i’ in team”, é impossível traduzi-la como “não há ‘i’ em equipe”, pois claramente há (em “time” também). Obviamente, portanto, não se trata apenas de “trocar as palavras de um idioma por outro”. A tradução é um processo complexo que tenta adequar textos de idiomas diferentes não só gramaticalmente (morfológica, sintática e estilisticamente), mas também culturalmente. Por vezes, até fonologicamente, como é o caso da poesia.
Nesse sentido, “box” nem sempre será traduzido por “caixa”. Esse fato ilustra bem uma das razões por que o tradutor evita verter palavras soltas. Em português, temos uma piada sobre o advogado que responde toda e qualquer pergunta com “depende”, mas algo semelhante ocorre no universo linguístico:
— O que é “whiplash” em português?
— Depende. Em que contexto?
Isso acontece por (principalmente) dois motivos. O primeiro deve-se a uma característica comum das línguas naturais: a polissemia. Quer dizer, palavras — em qualquer idioma, não só no português — geralmente possuem mais de um significado, e o contexto apontará qual desses significados se busca no caso concreto. Por exemplo, em português, “manga” pode se referir:
1) à fruta; ou
2) à manga de camisa.
Em algumas regiões do Brasil, “mangar” também é verbo e significa “rir-se, debochar de alguém”. Neste caso, “manga” seria:
3) a terceira pessoa do singular do verbo “mangar”: ele(a) manga de alguém.
O segundo motivo é que idiomas diferentes se expressam de formas diferentes. Enquanto um prefere a palavra “X”, outro prefere a palavra “Y”. Enquanto um prefere usar um substantivo, o outro prefere usar um verbo.
Por exemplo, o incauto que lê “vaso” em espanhol pensa que significa “vaso” também em português, quando, na verdade, significa “copo”. Já “copo” se parece muito com o espanhol “copa” (que não tem nada a ver com a “copa” em português), que significa “taça”. Já “taza” em espanhol significa “xícara”. E o “vaso” em português corresponde à “jardinera” em espanhol (jardinera, o vaso grande para plantas; maceta, o vaso menor, para flores de mesa). Veja que confusão. Embora tenhamos as mesmas palavras, cada idioma os utiliza com significados diferentes.
Outro exemplo, ainda mais ostensivo: “estou com saudade de você”. Temos aqui a troca imediata de um substantivo (“saudade”) por um verbo em inglês: “I miss you”. Ou seja, em inglês não se tem algo (“saudade”): falta-se algo (a pessoa querida). O significado é o mesmo, mas a forma linguística utilizada para se atingir o mesmo objetivo é diferente. As diferenças entre idiomas não se dão apenas em nível morfológico, mas em nível sintático, e até (por que não?) em nível estilístico. Cada língua tem seu modo característico de se expressar.
Isso também pode ser visualizado em frases mais complexas, principalmente se utilizarmos uma construção extremamente comum a nosso idioma. Por exemplo, “beber bastante água faz bem” traz uma estrutura tipicamente portuguesa. Como vertê-la ao inglês? O falante de português jamais conseguirá chegar na resposta certa se tentar traduzir a frase palavra por palavra. É que, assim como no exemplo do parágrafo anterior, aqui não há uma correspondência exata morfológica nem sintática. O inglês prefere uma construção bem diferente: “drinking plenty of water is good for you”.
Nos dias de hoje, esse erro é cometido às avessas. O tradutor do filme ouve o ator dizer “good for you” e prontamente tasca na legenda: “bom pra você” — quando a verdadeira tradução é “faz bem”.
Ross e Joey, no episódio “The One with Phoebe’s Uterus” (Friends).
Veja trecho no YouTube.
Da mesma forma, o mau tradutor verte “to think outside the box” como “pensar fora da caixa”. É um equivoco porque, ao contrário do inglês, que passou anos cozinhando a frase até que se tornasse uma expressão cultural desassociada do jogo, o português não passou por esse processo. A expressão jamais foi utilizada por um dos grandes escritores da língua portuguesa (independentemente do país, frise-se), pois ela obviamente surgiu a partir do precário decalque do inglês, no mundo globalizado atual. Não temos (nem nunca tivemos) a cultura da “caixa”, até porque a tradução de “box” nesse contexto seria “quadrado”. E assim como não dizemos “está chovendo gatos e cachorros” (do inglês it’s raining cats and dogs, cujo equivalente seria “está chovendo canivetes”) nem “custa um braço e uma perna” (to cost an arm and a leg — “custa os olhos da cara”), tampouco deveríamos dizer “pensar fora da caixa”. Não é parte de nossa cultura, nem corresponde à estrutura adequada ao português. Trata-se de frase compelida, por meio de tradução forçada, a entrar no idioma.
É que provérbios e expressões idiomáticas são fenômenos essencialmente culturais. Traduções literais (ao pé da letra), que já não fazem muito sentido normalmente, tendem a piorar em “frases feitas”. Como manifestação cultural própria dos países de língua inglesa, “to think outside the box” deveria ser vertido ao português de forma que se encaixasse melhor na cultura de nosso idioma. Algo que não vem acontecendo hoje devido à influência avassaladora do inglês sobre o português, aliado à escassez de bons profissionais no mercado e ao desprestígio da própria profissão, como um todo, no admirável mundo novo do Google Tradutor.
Esse fenômeno pode ser observado principalmente nas áreas de conhecimento que mantêm contato mais imediato com as línguas estrangeiras. Nas empresas, temos o jargão corporativo; nos call-centers (o próprio nome já corrobora a situação), o material de marketing telefônico (precisamente a origem de uma das maiores calamidades a assolar o português moderno: o gerundismo); na informática, os termos de tecnologia. Aqui, você provavelmente deve estar pensando em “mouse” e “CD”, mas é também deste último ramo que provém o termo “caixa de seleção” — evidentemente oriundo de “check box”. A prática é tão forte que até mesmo os verbos do inglês foram aportuguesados, e “tick the boxes” (assinalar os marcadores) virou “ticar as caixas”. Porque não bastava o decalque, precisávamos também de um empréstimo linguístico.
Conclusão
O que fazer, então? É errado usar “pensar fora da caixa”?
Depende.
Diz o ditado inglês que “language and culture go together” (língua e cultura são inseparáveis). Nesse sentido, o conselho seria evitar a expressão, por ser uma figura cultural inglesa que não faz sentido em português. Quem não mora nos grandes centros urbanos nem tem pronto acesso ao inglês e a anglicismos como esse, não sabe o que significa “pensar fora da caixa”. A expressão não faz sentido em nosso idioma — sequer sabemos visualizar a “caixa” correta a que se refere a expressão. Não admira que ela sequer exista oficialmente em nossa língua, sendo preterida tanto por dicionários quanto por gramáticas e manuais.
Por outro lado, seria complicado recriminar o sujeito que utiliza a expressão à mesa de bar. Primeiro, não há lei cominando pena a quem fala “errado”. Segundo, mesmo que houvesse, como se executariam essas leis? Quem falasse “nós vai” levaria multa? Ou seria caso de cadeia? Se multa, de quanto? Quem seria o órgão competente para executar essas leis? Pior: quem será intitulado o dono da verdade para decidir o que se classifica como “errado” na língua? Pois brasileiro nenhum segue as regras da gramática prescritiva a ferro e fogo: quem é do sul não se apega muito a conjugação, dizendo “tu vai” (e não “tu vais”); do Rio para cima, transformam “s” em “r” (mermo, mermão); e absolutamente ninguém deste país segue as regras de colocação pronominal (que, admitamos, são baseadas na prosódia do português europeu, daí nossa manifesta incapacidade em entender aquele sem-número de regramentos, com quantidade ainda maior de exceções). Qual foi a última vez que você se pegou utilizando a mesóclise? Ou que ouviu o caixa de supermercado usar “vós”? Mal sabemos a diferença entre “vir” e “ver” (conte quantas vezes você ouve diariamente frases como “se ela vir pra cá”, em vez de “se ela vier”). E ninguém parece ter a menor ideia da diferença entre “dizer” e “falar”. Imagine o quanto mais há que não seguimos dessas regras. Oficialmente criminalizar o uso do português “errado” gera mais problemas do que os resolve.
Assim, embora utilizar essas expressões anglicizadas não seja crime, o melhor, provavelmente, seria tentar evitar a expressão no falar informal. Mas sem se avexar. Afinal, é impossível evitar o giro do mundo, e língua que não muda nem sofre influência é língua morta. Se passar despercebido e a “caixa” aparecer, deixe estar. Mas em textos formais, como trabalhos escolares e universitários, monografias, teses, publicações em livros e periódicos, textos públicos e governamentais, e até mesmo em seu blog e/ou canal do YouTube (por motivos de influência sobre o grande público), o melhor seria mesmo utilizar outras expressões, como “pensar criativamente”, “pensar de forma inovadora”, “pensar fora dos padrões convencionais”, “ver além do óbvio”, “desconsiderar as limitações aparentes”, “pensar mais além”, “deixar de lado noções preconcebidas” e até mesmo “esqueça isso”. Há um número virtualmente ilimitado de opções, e a melhor será sempre a que se encaixar com mais perfeição ao caso concreto — ou, para usar a palavra mágica da tradução, ao contexto.



