Gerundismo

Gerundismo

Gerundismo (Haggen Kennedy)

Gerundismo: confusão entre formalidade e duração temporal.

Você entra em uma loja e pede um item. A atendente diz:

Vou estar pegando pra você.

 Esse tipo de construção tem se popularizado na língua portuguesa, o que enseja algumas perguntas:

  • O que é esse tal de gerundismo?

  • O que há de errado com ele? (Se é que há algo de errado.)

  • Como ele se originou? De onde vem?

  • Como solucionar o problema? Quais são as alternativas ao gerundismo?

 Este artigo se debruça sobre possíveis respostas a todas essas perguntas.

Do início

Em frases como “vou estar pegando” e “vou estar enviando”, podemos observar que há a presença de verbos no tempo futuro (“vou estar”, ou “estarei”) e no gerúndio (“pegando”, “enviando”). Caso você não saiba o que é um gerúndio, não se preocupe: destrincharemos esses termos juntos.

Runner (Haggen Kennedy)


Gerúndio: ação continuada

Gerúndio

A palavra “gerúndio” vem do latim “gerere” — que primeiro se transformou em “gerer” e, por fim, chegou ao português como “gerir”. Na Roma Antiga, porém, “gerere” significava “ter consigo”, “carregar consigo” — daí ter se desenvolvido na ideia, em nosso idioma, de “cuidar de um negócio, administrar”, pois gerimos o que está em nossa posse (o que “carregamos” conosco). Em português, temos várias palavras surgidas deste verbo latino:

  • do infinitivo “gerere”, o próprio verbo “gerir”;
  • do substantivo “gestum”, o atual “gesto”;
  • e do particípio ativo “gerens, gerentis”, temos a forma participial ativa em português para aquele que gere: “gerente” — que, como já explicamos no artigo sobre “presidenta”, não muda de forma, sendo comum aos dois gêneros: o gerente, a gerente.

Na gramática latina, especificamente, o termo “gerúndio” designava uma categoria de palavras que “carregava consigo” uma ação sem delimitação temporal. Ou seja, essa classe de verbos conotava a ocorrência pura e simples de ações, sem marcar um momento inicial nem final.

Como o gerúndio latino é um pouco diferente do utilizado em português, não nos vamos delongar nele aqui. Basta sabermos que a ideia principal é essa: a de ação em andamento, sem demarcação clara de início nem fim. É exatamente essa característica que faz do gerúndio em português uma forma “aberta”. Veja:

  • Estou andando.

  • Estou comendo.

  • Estou curtindo.

  • Estou pondo.

Na frase acima, sabemos que “andando”, “comendo”, “curtindo” e “pondo” estão no gerúndio pela terminação –ndo. Em poucas palavras, o gerúndio marca uma ação (andar, comer, curtir, pôr) que está em andamento, em progresso, em curso, ou seja, uma ação que está acontecendo: não sabemos quando comecei a comer nem quando vou parar de comer. Só sabemos que estou comendo neste momento. Há uma duração.

É diferente quando dizemos “ele viu um pássaro”. O verbo “viu” marca uma ação passada, que já se esgotou no tempo. Essa ação começou e já se acabou: não há duração, foi algo pontual. A pessoa viu, ponto (não foi algo que durou uma quantidade ilimitada de tempo). Se quiséssemos mostrar duração/continuação no tempo passado, a frase seria “ele ficou vendo um pássaro”. Percebeu algo? Não é à toa que a palavra “vendo” é um verbo no gerúndio — mesmo no tempo passado. O mesmo acontece em “estou jogando videogame”: aqui, temos uma ação continuada (a pessoa está — e continua — jogando videogame). E, novamente, a mesmíssima coisa acontece em tempos verbais futuros: “estarei jogando videogame”. Não sabemos quando ela cessará o que está fazendo.

O gerúndio é isso: uma ação em andamento. Em português, construímos a ideia de “ação que está acontecendo” com a terminação verbal “-ndo”.

Gerundismo

Enquanto o gerúndio é normal ao português, o gerundismo, não: este corresponde a uma certa afetação (leia-se: exagero) em construções envolvendo a fórmula:

[verbo “estar”, geralmente no futuro]
[gerúndio]

Isto é importante: o gerundismo é o abuso do gerúndio de forma específica. Não se trata do uso indiscriminado do gerúndio, mas sim do abuso na utilização da fórmula [“estar” + gerúndio]. Ou seja, temos dois verbos:

1. “estar”, geralmente no futuro (“eu vou estar”, ou “estarei”; “você vai estar”, ou “você estará”; e assim por diante), somado a…

2. um verbo no gerúndio (ligando, repassando, enviando, mostrando etc.). Por exemplo:

FUTURO
Estarei
Vou estar

te
te
GERÚNDIO
ligando.
enviando.

Ou seja, para efeitos deste artigo, o gerundismo não se confunde com o mero exagero do gerúndio. O gerundismo é o uso equivocado da fórmula [“estar” + gerúndio]. Observe esta frase:

Quando eu estava caminhando, encontrei alguém comendo que vinha sonhando em acabar fazendo algo de bom da vida.

Aqui, temos muitos verbos no gerúndio (caminhando, comendo, sonhando, fazendo). O uso excessivo desse recurso torna a frase deselegante, mas isso não é gerundismo. Sim, é um abuso do gerúndio, mas o gerundismo, para efeitos deste artigo, é mais específico, abarcando o [verbo “estar”] seguido de um [verbo no gerúndio]. Observe:

Você pode também estar passando por fax, estar mandando pelo correio ou estar enviando pela Internet. O importante é estar garantindo que a pessoa em questão vá estar recebendo esta mensagem, de modo que ela possa estar lendo e, quem sabe, consiga até mesmo estar se dando conta da maneira como tudo o que ela costuma estar falando deve estar soando nos ouvidos de quem precisa estar escutando.”

— Manifesto antigerundista.

O parágrafo acima soa artificial, e a intenção do autor foi proposital — mas, por enquanto, nosso foco não é esse. O importante agora é visualizar que a mera presença de muitos verbos no gerúndio não equivale à prática do gerundismo (pelo menos não para fins deste artigo). Quando aqui falamos no gerundismo, referimo-nos a algo mais específico — ao uso incorreto da fórmula [verbo “estar”] + [gerúndio]. É importante ter em mente esta definição do gerundismo, pois sempre que falarmos em “gerundismo”, este artigo estará se referindo a essa definição específica (percebeu algo? Leia o artigo até o final e volte para saber por que “estará se referindonão é gerundismo).

Runners (Haggen Kennedy)


Gerundismo: afetação do gerúndio

Origens do gerundismo — algumas reflexões

A hipótese mais difundida é a de que o gerundismo tenha surgido a partir de más traduções de textos em língua inglesa. Antônio Suárez Abreu, por exemplo, em sua “Gramática mínima para o domínio da língua padrão” (Ateliê Editorial, 3ª ed., 2012) declara abertamente que o gerundismo provém de “traduções malfeitas da língua inglesa” (p.326).

Há quem discorde. José Augusto Carvalho, por exemplo, considera a hipótese “equivocada”. Para ele, o que teria originado o gerundismo seria “apenas o abuso de seu emprego fora dos padrões normativos de respeito ao aspecto verbal”.

Embora não possamos afirmar com certeza de onde surgiu o gerundismo, cabem aqui algumas reflexões importantes. A primeira é que textos anteriores à década de 90 simplesmente não aparentam trazer ocorrências desse vício de linguagem. Ou seja, o gerundismo (novamente: conforme definido neste artigo) mostra-se singularmente ausente em produções de língua portuguesa, e não se está falando aqui de autores consagrados apenas. Não. Falamos de todos os tipos de texto, inclusive revistas em quadrinhos, artigos de periódicos e até o simples falar cotidiano. Pode parecer estranho, baseado na realidade atual, mas é raríssimo encontrar uma ocorrência de gerundismo em textos que pré-datam o surgimento da internet.

A segunda reflexão está atrelada à primeira: antes da virada do milênio, há total ausência, por parte de gramáticas e manuais de português, do tema gerundismo. Encontrei pelo menos um (1) website declarando que o gerundismo é antigo e resultado de galicismo, mas o mesmo site, em referência ao tema em questão, confunde “gerúndio” com “gerundismo” (motivo por que tivemos o cuidado de definir estritamente, neste artigo, o que consideramos “gerundismo”). Pois não são a mesma coisa, e a antiga aversão a abusos do gerúndio (que, estes sim, resultam de galicismo, e que o próprio J. A. Carvalho oferece como evidência contra a hipótese da influência inglesa) não mantém relação com o gerundismo — este é fenômeno novo, referente especificamente ao uso incorreto de gerúndio precedido do verbo “estar”.

De fato, o gerundismo é tão novo que gramáticas de décadas anteriores, como a de Cegalla, Celso Cunha, Lindley Cintra e demais, são completamente silentes sobre o tema. Tampouco compilações como o “Dicionário de Questões Vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida, tratam do assunto. Manuais como a “Estilística da língua portuguesa”, de Manuel Rodrigues, idem. O mundo de língua portuguesa anterior ao novo milênio parece desconhecer completamente o fenômeno do gerundismo, como se nunca houvesse existido.

Minha terceira reflexão é admitidamente subjetiva, mas, nem por isso, menos importante. Quando era ainda jovem, nos anos 80, e deparei-me pela primeira vez com o futuro contínuo (também chamado de “futuro progressivo”) do inglês (I will be calling you), lembro-me de pensar: “consigo entender o que significa. É como ‘estarei te ligando’, mas ninguém fala assim”. A parte “ninguém fala assim” é importante, por indicar que esse tipo de construção ainda não era comum. Já mais velho, recordo-me de ler autores como Agenor Soares dos Santos e de me identificar fortemente com a capacidade que tinham de perceber que determinado texto em português era uma tradução da língua inglesa — mesmo sem ter acesso ao texto original (o que chamamos de “língua fonte”). Em outras palavras, o tradutor experiente consegue reconhecer, pela mera leitura de um texto, se ele é ou não traduzido. Conseguimos fazer isso porque sentimos o “gosto” de coisa traduzida. De fato, a depender da qualidade do texto, até o leigo consegue notar algo estranho ali.

É um exemplo prático de como o bom profissional, independentemente da área de atuação, consegue apontar imediatamente as falhas em seu objeto de trabalho — principalmente quando incorridas por outrem. O bom dentista sabe dizer se é de boa qualidade a restauração dentária feita pelo colega; o bom sapateiro sabe identificar o calçado de má qualidade; o bom engenheiro reconhece o projeto defeituoso apresentado por outro engenheiro. Da mesma forma, o bom tradutor enxerga imediatamente se o texto em português é fruto de tradução.

E por que isso importa? Porque frequentemente, antes mesmo de terminar de ler a primeira frase de um texto mal vertido, já é possível concluir se ele corresponde a coisa traduzida. Mesmo textos muitíssimo bem escritos deixam entrever sua proveniência de um idioma estrangeiro. Isso significa que certos conteúdos reportam (remetem) o tradutor imediatamente a um tipo de construção que, sendo incomum ao português, são facilmente reconhecidos como provenientes de outro idioma.

Isso ganha relevância especial quando compreendemos que, atualmente, é muito comum encontrar, na internet, conteúdos em português frutos de traduções de parca qualidade. O motivo para isso dá “pano pra manga”, e, no intuito de evitar um artigo desnecessariamente extenso (mais do que já é), deixaremos a conversa para outra ocasião. O importante aqui é demonstrar que:

  • há, online, uma enxurrada de influências da língua inglesa no material que consumimos diariamente em português;
  • o bom tradutor reconhece, de imediato, textos mal traduzidos (e frequentemente até os bem traduzidos) nesses materiais (incluindo-se aí o gerundismo); e que
  • esse conhecimento e essa experiência prática, embora subjetivos, não podem ser descartados, vez que correspondem à realidade factual de quem trabalha com isso cotidianamente.

Globalização (Haggen Kennedy)


A globalização afetou o português.

Nesse sentido, é importante apontar a força com que a influência inglesa no português explodiu com a globalização. Isso não acontecia, ou acontecia muito pouco (ou mais lentamente), na era pré-internet. Essa intervenção no português trouxe pontos positivos e negativos. Entre os relativamente negativos estão a enxurrada de palavras estrangeiras que vieram a substituir, sem necessidade, termos de perfeita correspondência em português. Entre os extremamente negativos está o gerundismo.

Evanildo Bechara, em sua “Gramática Escolar da Língua Portuguesa” (2010), diz que o gerundismo “se instalou na oralidade da linguagem moderna, especialmente comercial” (p.207). Essa afirmação corrobora a experiência de muitos tradutores, em dois sentidos:

1. Primeiramente, quanto ao aparecimento de ferramentas de tradução automática, como o Google Tradutor, que massificaram a atividade de tradução, frequentemente retirando o elemento humano da equação; e

2. A forma como empresas, na tentativa de diminuir custos, e achando-se num mundo globalizado, buscaram traduções ao português:

a) em ferramentas de tradução automática; e/ou

b) em falantes não nativos de português (que, por sua vez, muitas vezes utilizavam tradução automática).

Novamente: é assunto para outro artigo. O essencial é compreender que empresas de grande porte têm um volume considerável de manuais e diretrizes; que a tradução de volumes tão extensos incorre inevitavelmente em valores igualmente significativos; e que, na tentativa de baratear custos, nenhuma das opções acima leva a traduções de alta qualidade. Pelo contrário, empobrecem muito o resultado.

Pois bem, essas mesmas traduções, como seria de se esperar, terminaram por imiscuir-se na “linguagem comercial” (para usar o termo de Bechara), como aquela usada no telemarketing. Atendentes de call center (e incluamos parênteses aqui para lembrar que palavras como “telemarketing” e “call center”, por si só, já indicam a extraordinária influência da língua inglesa sobre o português no novo milênio) utilizavam as orientações e informações presentes justamente nesses manuais internos mal traduzidos. São conteúdos com traduções literais, artificiais, em que “I will be forwarding you to X” é vertido como “estarei te repassando para o setor X”. E onde foi parar esse novo modo de falar, com essas traduções afetadas? Ora, nos ouvidos de todos os brasileiros que alguma vez precisaram ligar para um centro de atendimento ao cliente. Ou seja, falamos aqui de uma divulgação nacional em massa.

Agregamos aqui, portanto, a soma de alguns fatores:

1. Ausência de gerundismo (conforme definido neste artigo, que não se confunde com o mero abuso do gerúndio) nas formas escrita e oral antes da década de 90;

2. Ausência de menções ao (e alertas contra a utilização do) gerundismo nas edições de gramáticas, manuais, guias (etc.) anteriores à década de 90;

3. Recente popularização da internet (inexistente antes da década de 90);

4. Recente popularização de ferramentas de tradução automática (inexistentes antes da década de 90);

5. Recente fenômeno da globalização, com suas respectivas tecnologias;

6. Introdução do gerundismo na linguagem comercial, como em centros de atendimento ao cliente (call centers, cujo próprio nome em inglês já é um forte indicativo da nova onda que se estava formando);

7. Bons profissionais de tradução notam o aumento de más traduções advindas de inteligência artificial e de falantes não nativos do idioma, simultaneamente à ocorrência do gerundismo;

8. A presença avassaladora do inglês no dia a dia do brasileiro, com suas consequências linguísticas (delivery, call center, 50% off, pensar fora da caixa, explosão da troca de nem” por “ou, o estapafúrdio “entregar” etc.)

Isoladamente, cada um desses elementos poderia sugerir algo diferente. Coletivamente, porém, estabelecem um indício forte, talvez (provavelmente) insuperável, de que esteja correta a hipótese (esmagadoramente majoritária) da influência da língua inglesa como causa do gerundismo.

Esse processo gera algumas consequências, que inicialmente podemos categorizar assim:

1. A parcela da população que possuía ao menos alguma intimidade com a língua culta deparou-se com esse novo modo de falar (gerundismo) e achou estranho. Muitas dessas pessoas não absorveram a mudança, ao menos inicialmente;

2. A parcela da população mais humilde (justamente a que mais se vê obrigada a entrar em contato com setores de atendimento ao cliente) também se deparou com a mudança. Entretanto, esta parcela tradicionalmente corresponde àqueles com menos acesso à educação e ao uso da língua culta. Como já dissemos em outra oportunidade, tendemos a interpretar certas formas linguísticas (principalmente quando provenientes de entidades que consideramos autoridades) como a norma culta. Assim, esta parcela da população absorveu o gerundismo como se língua culta fosse — afinal, do outro lado da linha estavam atendentes de São Paulo (que, por si só, já goza de certo status frente a estados de outras regiões) falando em nome de uma grande empresa (outra autoridade, que gosta de olhar para clientes como se estivessem abaixo dela).

Atualmente, com a internet e seus desdobramentos (como o Google Tradutor e, mais recentemente, ChatGPT, Claude e demais inteligências artificiais), é preciso ter em mente que, às vezes, sentimos um estranhamento não porque uma expressão estranha seja de norma culta, mas simples e realmente por ser, mesmo, estranha ao português. E aí está a encrenca: para saber em qual das duas categorias a expressão se encaixa (norma culta ou má tradução), é preciso ter conhecimento: ler, estudar e abrir o leque de informações. Quanto menos se conhece, mais corre-se o risco de interpretar mal a informação. E neste quesito estamos bastante atrasados — basta lembrar que aqui, no Brasil, ser nerd e estudar é geralmente motivo de escárnio.

A construção [estar + gerúndio] está sempre errada?

Como produto humano, raramente encontramos algo “100%” em matéria de idiomas. Portanto, não: a construção [estar + gerúndio] não é sempre um erro. Há situações em que o emprego desta fórmula é perfeitamente correto. E esta é a importância de entender a função do gerúndio: ele é que explicará quando cabe ou não a utilização da fórmula. Por exemplo:

1) Quando você chegar aqui, estarei fazendo palavras cruzadas.

2) Sua dúvida é pertinente. Estarei te passando para o setor correto.

Consegue notar alguma diferença entres as duas frases? Por que a primeira é considerada correta, enquanto a segunda é repudiada (o famigerado gerundismo)?

O grande elemento diferenciador das duas é o aspecto de duração.

Em geral, a função do gerúndio é transmitir o aspecto de duração, de continuidade da ação realizada (todo verbo é uma ação: ser, estar, fazer, comer etc.). Portanto, “estarei fazendo” (1º exemplo) e “estarei te passando” (2º exemplo), ambos, trazem uma ação continuada. O grande “porém” é que, no 2º exemplo, o falante não quis passar a ideia de ação continuada, mas sim, de ação pontual. Este, portanto, é o erro: a intenção de exprimir a ideia “X” utilizando uma forma linguística que passa a ideia de “Y”. Quando isso (exprimir uma ideia utilizando uma forma linguística inadequada) é feito por despreparo do falante, temos então a definição exata de vício de linguagem:

“Vícios de linguagem são incorreções e defeitos no uso da língua [resultantes] do descaso ou do despreparo linguístico de quem se expressa.”

— Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, Cegalla, p.634.

Para ilustrar o conceito de continuidade, podemos trocar o verbo “estar” por um verbo de continuação, como “ficar” (mas poderá ser outro verbo semelhante, a depender do que faça mais sentido na frase). Assim:

Estarei te passando para o setor correto:

Vou ficar passando você (o tempo todo) para o setor correto.

Você pode estar ligando para o médico, para perguntar:

Você pode ficar ligando (o tempo todo) para o médico.

Dessa forma, conseguimos enxergar o que significa o gerundismo: o atendente não quis dizer “vou ficar passando você o tempo todo para o setor”. Não, ele transferirá a ligação uma única vez. Da mesma forma, ninguém passará o dia ligando para o médico. Isso é feito uma única vez, de forma pontual. Mesmo que fosse necessário ligar mais de uma vez, a ligação continuaria sendo pontual, e não repetidamente, o tempo todo.

Em português, a fórmula [estar + gerúndio] é geralmente utilizada quando temos duas ações que acontecerão concomitantemente (ao mesmo tempo) no futuro. Por exemplo:

 “Nesse horário amanhã, estaremos chegando em Paris.”

Na frase acima, temos uma ação que ocorre enquanto ou durante (ou seja, ideia de ação continuada) a realização do outro componente futuro da frase. Temos aqui dois elementos:

1. O “horário” futuro; e

2. A futura chegada em Paris.

Ou seja, durante (continuidade) aquele intervalo de duração (o “horário”), realizaremos a ação (que se dará durante aquele horário) de chegar em Paris.”

Novamente, temos aqui dois elementos:

[acontecimento futuro “X”]
[elemento futuro “Y” que acontecerá durante o futuro “X”].

A palavra “durante” ilustra a continuidade que existe na ação. Ou seja, não é uma ação pontual, mas continuada, que se protrai no tempo. É essa ideia de continuação que indica que a segunda ação sempre se prolonga durante o outro evento futuro mencionado. Isso acontece mesmo se dividirmos as frases: 

— Você vai na festa semana que vem?

— Não, estarei viajando.

Aqui, a fórmula [estar + gerúndio] em “estarei viajando” também está correta porque temos duas ações futuras:

1. Uma festa; e

2. Uma viagem.

A viagem (2) acontecerá durante (terá continuidade, se prolongará durante) a festa planejada (1). Ou seja, durante todo o tempo em que a festa acontecer, a pessoa estará em viagem. A viagem abarca essa continuidade temporal. 

Agora, tentemos utilizar esse mesmo pensamento em frases com gerundismo:

Estarei te ligando.

Estarei te transferindo.

Você pode estar conferindo com seu plano.

Veremos prontamente que não fazem sentido:

1. Em “estarei te ligando”, qual é a continuidade futura existente durante a outra ação futura? Durante o quê, no futuro, essa ligação acontecerá, exatamente? A frase não traz continuação futura durante outra ação futura. O atendente não “estará ligando” no futuro durante alguma outra coisa que também acontecerá no futuro. A ligação é pontual, no aqui e no agora: “vou te ligar”, e não “vou ficar te ligando sem parar”.

2. O mesmo acontece com “estarei te transferindo”: durante o quê? Enquanto qual “outra coisa” acontecerá no futuro? Não há. A transferência é pontual: “vou te transferir”, e não “vou ficar te transferindo sem parar”.

3. Não é diferente em “você pode estar conferindo com seu plano”: não há continuidade futura enquanto outro elemento futuro acontece. A conferência é pontual: “vou pode conferir seu plano”, e não “você pode ficar conferindo, sem parar, o plano”.

Em inglês: futuro contínuo x futuro simples

É comum achar que a tradução é um sistema perfeito em que se verte, palavra por palavra, um texto de um idioma a outro:

The pen is red
A caneta é vermelha

Porém, a coisa não é assim tão simples. Observe:

The red pen
A caneta vermelha

Temos no inglês uma regra (adjetivo primeiro + substantivo depois) que é o inverso do sistema português (substantivo primeiro + adjetivo depois). Assim como essa, há um sem-número de outras normas linguísticas que não correspondem a nosso idioma, devendo ser vertidas de forma diferente:

  • Comer é bom.
  • Eating is good.

Enquanto usamos o infinitivo (comer), o inglês utiliza o gerúndio (eating, comendo). Isso acontece também com o future continuous, ou futuro contínuo, também chamado de futuro progressivo:

INGLÊS: I will be calling you.

TRADUÇÃO LITERAL: Eu estarei ligando pra você.

SIGNIFICADO REAL: Eu ligarei para você com certeza.

O QUE DIZEMOS NORMALMENTE: Te ligo hoje mais tarde para combinarmos.

Embora a primeira tradução seja literal, a ideia (significado) por detrás do futuro contínuo do inglês não corresponde à ideia do [estar + gerúndio] em português.

Em inglês, um dos modos em que o futuro contínuo (I will be calling you) se diferencia do futuro simples (I will call you) é que o primeiro caso dá certeza de que uma ação futura acontecerá, enquanto o segundo é um futuro intencionado, mas incerto. Justamente por isso, o futuro contínuo (will be + gerúndio) é comumente utilizado em frases demonstrando que algo ocorrerá em um futuro próximo. Veja alguns exemplos que ilustram melhor essa diferença:

FUTURO SIMPLES (incerto):

They will promote me to manager (one day).

Vão me promover a gerente (algum dia, não se sabe quando: é um plano, uma intenção).

FUTURO CONTÍNUO (certeza):

They will be promoting me to manager (on Friday).

Vão me promover a gerente (já é certeza — acontecerá essa sexta-feira).

A primeira frase (futuro simples) denota um futuro planejado e/ou intencionado, mas não certo. A segunda frase não é um planejamento nem uma intenção, mas uma certeza: a pessoa está para ser promovida, é algo que provavelmente está na iminência de acontecer.

Outros dois exemplos:

FUTURO SIMPLES (incerto):

You will meet someone who will change your life.

Você conhecerá alguém que mudará sua vida.

Como utilizamos o futuro simples (will meet), trata-se de uma previsão futura, sem certeza. Seria a frase utilizada em uma profecia ou por alguém tentando adivinhar sua sorte no tarô, por exemplo.

FUTURO CONTÍNUO (certeza):

You will be meeting someone who will change your life.

Você conhecerá (com certeza) alguém que mudará sua vida.

Aqui, o futuro contínuo (will be meeting) traz um futuro certo, o que elimina dúvidas — portanto, não se trata mais de profecia, de previsão futura. Trata-se de uma certeza, como um encontro marcado, possivelmente em pouco tempo (por exemplo, “hoje à tarde”). Note que a oração seguinte, “someone who will change your life” (alguém que mudará sua vida) traz uma previsão (tentativa incerta de adivinhar o futuro), devido ao uso do futuro simples (will change). Se usássemos “will be changing”, então, novamente, não se trataria de adivinhação, mas de certeza.

Por isso é que os falantes de língua inglesa costumam dizer em palestras, vídeos de YouTube, dentre outros, coisas como “today we’ll be talking about” (hoje vamos falar de…). Isso não quer dizer “hoje estaremos falando de”, mas sim que “falaremos [é uma certeza, e acontecerá agora, nos próximos 5 minutos] sobre…”. Não há correspondência formal (isto é, da forma verbal) entre o gerúndio do inglês (certeza sobre o que acontecerá no futuro próximo) e o gerúndio do português (ação continuada, geralmente a acontecer durante uma segunda ação na mesma frase). Ou seja, a forma verbal [futuro + gerúndio] em inglês não corresponde à forma [futuro + gerúndio] em português. Como já conversamos, só porque um idioma utiliza determinada forma, isso não significa que outro idioma (com regras diferentes) escolherá a mesma forma. Pelo contrário, às vezes uma língua prefere a palavra “X”, outra prefere a palavra “Y”. Às vezes, uma prefere usar um substantivo, a outra prefere usar um verbo.

Ou seja, no caso do gerúndio inglês, não se deve usar necessariamente o gerúndio em português. A fim de preservarmos a mesma ideia nas duas línguas, é necessário transformar os tempos verbais conforme o que for mais apropriado ao caso concreto. Digo “os tempos verbais”, mas esse fenômeno não está restrito somente a verbos, podendo ocorrer com substantivos, adjetivos, pronomes, expressões e até frases inteiras (lembra-se de como dizer “beber água faz bem” em inglês?).

Vale lembrar que isso não ocorre apenas entre português e inglês, mas com qualquer combinação de idiomas. Em grego antigo, por exemplo, raramente um tempo verbal corresponde ao tempo verbal de mesmo nome em português: frequentemente, é necessário traduzir um pretérito perfeito grego como presente em português; um pretérito imperfeito como perfeito; e por aí vai. As línguas são sistemas complexos, cada um(a) com suas próprias idiossincrasias. A tradução “palavra por palavra” é um método ultrapassado, anterior ao século XIX. Já avançamos muito desde então.

Utilizar, portanto, o gerundismo (“vou estar fazendo”) como tradução palavra-por-palavra, achando que equivale ao futuro contínuo do inglês (I will be doing) é como tentar encaixar círculo num quadrado: as formas não se coadunam. O gerúndio em português traz nuances de duração, de prolongamento; e não de pontualidade, muito menos de certeza. Quando desejamos imprimir a noção de pontualidade (“vou ligar”, e não ficar ligando repetidamente; “vou transferir”, e não ficar transferindo continuadamente), é preciso utilizar o futuro simples (“vou transferir” ou “transferirei”), e não a fórmula [estar + gerúndio], como em “vou estar transferindo”. Ao evitarmos o gerundismo nesses casos, evitamos o vício de linguagem, preservando justamente o desejo do falante: soar mais formal, em tom de respeito ao cliente, mediante a utilização da norma culta. Ou seja, se o atendente deseja utilizar o registro formal, então a solução é fácil: basta ensinar-lhe o tal registro formal, mostrando a fórmula correta. Sem preconceito, apenas com boa vontade — pois ninguém nasceu sabendo. E este blog, lembremos, serve para isso mesmo: abrir o conhecimento a todos.

Gerundismo: mais maléfico do que aparenta

As línguas humanas são um sistema complexo. Se abrirmos um livro de Gramática, veremos que o idioma engloba uma variedade de componentes, como fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, até estilística, dentre outros. A língua, portanto, é formada de vários elementos distintos que se somam para formar um todo complexo.

Lobo com ovelhas (Haggen Kennedy)


Gerundismo.

A compreensão disso é importante por vários motivos. Neste caso específico, esse conhecimento é relevante para entender a categorização de uma língua em determinada família linguística. Ou seja, por que o português é considerado língua neolatina? Por que o inglês é uma língua germânica? Nossa primeira reação é pensar que o português vem do latim porque as palavras são muito parecidas, o vocabulário é essencialmente o mesmo, com algumas modificações ocasionadas pelo tempo e pela mudança na pronúncia. Porém, mais da metade do léxico (o conjunto de todas as palavras) do inglês é composto de palavras de origem latina. Alguns estudos colocam esse número em cerca de 60% do idioma, sendo responsáveis as palavras de origem germânica por apenas 26% da constituição do léxico inglês. Palavras como “action” (ação), “velocity” (velocidade) e “occupation” (ocupação) são prontamente reconhecidas por falantes de línguas neolatinas, como português, espanhol, italiano e francês. Isso é até parte do motivo por que o brasileiro consegue brincar e criar neologismos em inglês, como “sacanation”.

Mas se o inglês tem um vocabulário tão latino, por que a língua é considerada germânica, e não neolatina?

Porque o que realmente categoriza uma língua como parte de determinada família linguística é sua estrutura interna, como ela organiza as ideias (e as palavras) internamente. De forma simplificada, poderíamos dizer que seria principalmente por sua morfossintaxe. Assim, por mais que o inglês seja repleto de palavras de origem latina, sua estrutura continua sendo essencialmente germânica.

Por exemplo, na frase “meu notebook tem um display de LCD com defeito”, temos muitas palavras em inglês. No entanto, sabemos que se trata de uma frase eminentemente redigida em português. O mesmo acontece em uma pergunta como “você prefere drive thru ou delivery?”. Neste último caso, há o adicional de que geralmente, nas línguas latinas, não há diferença entre frases na afirmativa e negativa: ou seja, não é necessário alterar a estrutura da frase para diferenciar uma afirmação de uma interrogação. Basta modificar a pontuação (na escrita) ou a entonação (na fala):

Afirmação: você vai à praia.

Pergunta: você vai à praia?

Em português, a única diferença entre essas duas frases é a pontuação final (na escrita) e na entonação (oralmente). Veja, entretanto, o que acontece em inglês:

AFIRMAÇÃO:

You will go to the beach.
(Você vai à praia.)

PERGUNTA:

Will you go to the beach?
(Você vai à praia?)

AFIRMAÇÃO:

You like chocolate.
(Você gosta de chocolate.)

PERGUNTA:

Do you like chocolate?
(Você gosta de chocolate?)

Vemos que não só a ordem das palavras muda, mas há um negócio estranho chamado “verbos auxiliares” (do, will), que não existem em português. Mudanças estas, lembremos, que são apenas uma dentre muitas outras características estranhas às línguas neolatinas (comuns, porém, às línguas germânicas, como alemão, sueco, norueguês, dinamarquês etc.).

O que isso significa para o português? Em tese, que a quantidade de “palavras soltas” importadas do inglês é irrelevante: a língua portuguesa sempre permaneceria inalterada em sua essência, no que realmente conta. Pois o vocabulário, por si só, não teria a capacidade de alterar a estrutura interna do português, a forma como nosso idioma organiza as ideias, a morfossintaxe. Ou seja, mesmo que, por influência inglesa, utilizemos incorretamente o verbo reportar, isso não desarranjaria a morfossintaxe portuguesa. Nossa língua continuaria preservada. Sempre diremos “caneta vermelha”, jamais “vermelha caneta”.

Eis que entra o gerundismo. Uma formulação capaz de alterar componentes gramaticais como nossa morfossintaxe e estilística. É um elemento externo (da morfossintaxe germânica) que muda nosso estruturamento de ideias. Assim, ao invés de dizermos “vou transferir sua ligação” (aspecto pontual futuro), dizemos “vou estar transferindo sua ligação”, na tentativa equivocada de utilizar o registro formal para comunicar tempo futuro (mas inserindo uma forma verbal com aspecto de “certeza”, da família germânica). Observe quantos elementos dissociados. O uso do gerundismo é maléfico por se camuflar como influência meramente lexical (de vocabulário), enquanto, às escuras, opera alterações de cunho morfossintático no idioma. É um “lobo em pele de cordeiro” que melhor seria evitado, por perturbar não só a dimensão vocabular, mas a própria estrutura frasal da língua portuguesa.

Alternativas ao gerundismo 

Como podemos substituir o gerundismo no português? De forma simples, basta utilizar o que já falamos no dia a dia:

GERUNDISMO
Vou estar te transferindo.
Você pode estar vendo com seu plano de saúde.
Vamos estar retornando sua solicitação.
Em que posso estar lhe ajudando?
SUGESTÃO
Vou te transferir.
Você pode verificar com seu plano de saúde.
Verifique com seu plano de saúde.
Vamos retornar sua solicitação.
Retornaremos sua solicitação.
Em que posso ajudar?
Posso ajudar em algo?
Posso ajudar?

Em outras palavras, basta trocar a fórmula [estar + gerúndio] pelo futuro simples (vou fazer / farei, vamos verificar / verificaremos, vou ajudar / ajudarei) ou até pelo presente/imperativo (transfiro, verifique, retornamos, posso ajudar). Simples, não?

Conclusão

Creio que conseguimos responder algumas perguntas importantes, como: o que é o gerundismo, de onde surgiu, se seu uso está errado e como melhor construir nossas ideias em português; além da diferença entre gerúndio e gerundismo.

Para recapitular, o gerundismo, nos termos deste artigo, caracteriza-se especificamente por construções incorretas da fórmula [estar + gerúndio]. Ou seja, é a utilização incorreta do futuro com aspecto durativo para descrever um futuro pontual, por achar que a fórmula [estar + gerúndio] equivale ao registro formal dessa ideia na língua portuguesa. Sim, é possível utilizar a fórmula [estar + gerúndio] do modo correto, mas a maneira incorreta de usá-la chama-se gerundismo.

É difícil afirmar com certeza de onde veio o gerundismo, mas a corrente majoritária (e a que me subscrevo) acredita ser o resultado de más traduções da língua inglesa. Porém, independentemente de sua proveniência, é construção a ser evitada, não apenas por constituir vício de linguagem (em que equivocadamente se tenta transmitir uma ideia por meio da forma morfossintática errada), mas também por atuar na língua de forma a extrapolar o espaço meramente lexical, incidindo sobre a própria estrutura basilar do idioma. Mesmo que um dia fosse considerada gramaticalmente correta, o formato [estar + gerúndio] é deselegante demais para exprimir a ideia de pontualidade. O mais recomendado é utilizar as alternativas oferecidas neste artigo. Com elas, você jamais será criticado por dizer “A” ao querer dizer “B”.

A vírgula e o etc.

A vírgula e o etc.

Observe as duas frases abaixo:

Laranjas, maçãs, abacaxis, etc.

Laranjas, maçãs, abacaxis etc.

Qual das duas estaria correta? Em outras palavras, usa-se vírgula antes de “etc.”? Para você que está com pressa, a resposta é “fica a critério do freguês”, pois ambas as formas são aceitas hoje. Mas para você que está curioso e deseja saber mais, puxe uma cadeira, beba um café e boa leitura!

O que é “etc.”?

O pontinho depois do “c” já sugere que o “etc.” seja uma abreviação. Ela vem da frase em latim “et cētera”, que literalmente significa algo como “e essas outras”, “e outras como essas”, “e outras assim”, “e outras desse tipo” etc. (perdoem-me o trocadilho).

Vamos por partes: a primeira palavra, “et”, é a conjunção de adição latina “e” (por exemplo: “mala et uvae”, maçãs e uvas). É fácil ver como “et” se transformou em “e” no português: o som final /t/ caiu, e apenas o som da vogal “e” permaneceu:

et ➡️ e(t) ➡️ e.

Em francês, por outro lado, escreve-se “et” até hoje. Veja:

LATIM
Francês
Italiano
Português
Espanhol
et
et
e
e
y

Lembremo-nos, contudo, de que em francês se escreve “et”, mas geralmente pronuncia-se /ê/, sem o “t” final (a não ser que haja liaison com a próxima palavra). Portanto, essa perda do som /t/ final é uma modificação comum a todas as línguas neolatinas.

Já “cetera” é o plural, em latim, da palavra neutra “ceterum”.

Como assim, “palavra neutra”? É que, ao contrário do português, que só tem dois gêneros (masculino e feminino), o latim tinha três gêneros: masculino, feminino e neutro. “Ceterum” é uma dessas palavrinhas de gênero neutro, no singular; já “cetera” (também do gênero neutro) está no plural.

O conceito é um pouco difícil de entender, mas podemos pensar assim:

1. A palavra “esse” está no masculino (o livro: esse livro);

2. A palavra “essa” está no feminino (a casa: essa casa);

3. Já a palavra “isso” é um resquício do gênero neutro em latim.

Como “isso” termina em “-o”, tendemos a pensar nela como palavra masculina, mas basta refletirmos um pouco para ver que, se fosse realmente uma palavra masculina, ela teria o feminino normal em “issa”. Que não existe: ele só acontece na forma “isso”, sem outros gêneros. Ele sequer tem plural: “isso” só ocorre no singular. É uma palavra originalmente neutra, utilizada para coisas, ações, eventos, nunca pessoas.

Em latim, “ceterum” é um adjetivo nesse tal gênero neutro. E assim como é possível mudar os gêneros de adjetivos em português (bonito – bonita; feio – feia), também é possível mudar o gênero de “ceterum” para masculino (ceterus) e feminino (cetera). Ficaria mais ou menos assim:

SINGULAR

PLURAL
GÊNERO
MASCULINO
ceterus
ceteri
GÊNERO
FEMININO
cetera
ceterae
GÊNERO
NEUTRO
ceterum
cetera

Nesse caso específico, vemos que “cetera” aparece duas vezes: é tanto a forma do feminino singular quanto a forma do neutro plural. Na expressão “et cetera”, a palavra refere-se especificamente ao neutro plural.

E o que significa “cetera” exatamente? A palavra vem de uma junção da raiz indo-europeia “ko-” (radical dos pronomes demonstrativos “esse, essa, isso”) com a terminação “*-(e)teros”, que veio para o latim como “eteros” e para o grego como “ἕταιρος” (hétairos) — lembrando que, como já dissemos no artigo sobre o indo-europeu, latim e grego são línguas irmãs.

Mas e a palavra “(h)éteros”? Será que você a reconhece de algum lugar? Temos muitas palavras provenientes do grego com essa raiz, que significa essencialmente “outro”. Abaixo estão algumas delas:


Hétaira grega.

  • Heterogêneo: de outro (hétero) gênero; um conjunto com partes diferentes ou desiguais;

  • Heterossexual: a pessoa atraída pelo outro (hétero) sexo;

  • Heterônimo: pessoa com outro (hétero) nome (que, em grego antigo, era “ὄνυμα” [ônyma], palavra também do gênero neutro);

  • Hétaira: na Grécia Antiga, a hétaira (a outra pessoa, no sentido de a companheira) era mais ou menos o equivalente grego da gueixa japonesa. A hétaira era um tipo de cortesã que, além de serviços de cunho sexual, tinha conhecimento das artes e conhecia técnicas de entretenimento e de conversação. Ao contrário das mulheres “de família” gregas, as hétairas sabiam ler e escrever, eram cultas e até participavam dos simpósios. Em português, traduzimos a famosa obra de Platão como “O Banquete”, mas o termo original em grego é “Συμπόσιον”, literalmente “simpósio”, que correspondia a um período específico do banquete: basicamente, o momento após a refeição principal. Era durante o simpósio (e não durante a refeição) que os gregos conversavam e filosofavam. Algumas hétairas gregas tornaram-se muito famosas, como Frine e Thaís.

Se você é da área de saúde, com certeza já tem familiaridade com várias outras palavras com essa raiz, como heterocromia, heterotropia, heteromórfico, heterozigoto, heteroplasia, dentre outras.

Charles Xavier (James McAvoy) ensina a Amy (Annabelle Wallis) o conceito de heterocromia.
Cena de  (2011).

Em latim, a junção de “ko” + “(h)éteros” resultou em “koéteros” — que terminou por ser escrita “coéteros”, com “c”. Mais tarde, o primeiro “o” (de “oe”) caiu e a palavra terminou virando apenas “kéterus”, ou “céterus”. É que, muito embora hoje pronunciemos o “c” como /s/ (de “salada”), na antiguidade prisca, o “c” do latim era pronunciado como “k”. E “céterus” (pronunciado “kéterus”) significa, literalmente, “esse outro” (no masculino). Se utilizarmos a tabela anterior como parâmetro, as traduções seriam:

SINGULAR

PLURAL
GÊNERO
MASCULINO
ceterus
esse outro
ceteri
esses outros
GÊNERO
FEMININO
cetera
essa outra
ceterae
essas outras
GÊNERO
NEUTRO
ceterum
"isso" outro
(essa outra coisa)

cetera
"issos" outros

(essas outras coisas)

Transformar o neutro plural latino em um correspondente na língua portuguesa é um pouco árduo, pois perdemos o gênero neutro em nosso idioma. Consequentemente, o resultado costuma ficar um pouco “capenga” em português. Mas o sentido é esse, de “issos outros”, que corresponderia aproximadamente à expressão “essas outras [coisas]”. Adicionamos “coisas” porque se deixarmos apenas “essas outras”, não haveria diferença para o feminino.

Vejamos alguns exemplos reais de como a expressão “et cetera” era utilizada:

Sed profiteor me quaerere et cetera.

Mas admito que estou buscando outras coisas desse tipo também.

— Apuleio, Apologia, 33.4.

Contumelias et verba probrosa et ignominias et cetera dehonestamenta velut clamorem hostium ferat et longinqua tela et saxa sine vulnere circa galeas crepitantia.

Deixa que as contumélias, obscenidades, ignomínias e outras palavras degradantes como essas/desse tipo sejam como os selvagens clamores (urros de guerra) das hostes inimigas; como as lanças e pedras que, arremessadas de longe, crepitam contra o capacete dos soldados sem, contudo, lesioná-los.

— Sêneca, De Constantia Sapientia (Da Constância do Homem Sábio), 19.3

Oscula qui sumpsit, si non et cetera sumet,

Haec quoque, quae data sunt, perdere dignus erit.

Aquele que recebeu ósculos (beijos), se não receber também as outras coisas/o restante,

Será digno de (merecerá) perder também o que lhe já foi dado.

— Ovídio, Ars Amatoria (A Arte do Amor), I.669-670.

Illud quidem, ut dixi, firmum et ratum habeto, nihil extra causam de moribus et cetera eius vita me dicturum.

Isto, de fato, como disse, tenho como firme e justo, e nada direi além do próprio caso a respeito de seu caráter e das outras coisas (do restante) de sua vida.

— M. Cornelius Fronto (Frontão), Correspondências, Ad M. Caes. III. 3 (Naber, p. 41).

Codicillos oleagineos et cetera ligna amurca cruda perspargito et in sole ponito, perbibant bene.

Perspargir (molhar, aspergir em volta) os troncos de oliveira e outras lenhas, com amurca crua, e expor ao sol, para que absorvam bem.

— Catão, Da Agricultura, CXXX.

In partitione quasi membra sunt, ut corporis, caput, umeri, manus, latera, crura, pedes et cetera.

Se particionarmos, parecem membros, como o corpo, a cabeça, os ombros, as mãos, as laterais [do corpo], as pernas, os pés e outras partes como essas (ou seja: etc.).

— Cícero, Topica (Tópicos), VI.30.

Podemos observar que, historicamente, a conjunção aditiva “e” não pede vírgula, por tratar-se de uma enumeração de termos. Ou seja, se tomarmos a frase por extenso “laranjas, maçãs e outras frutas”, não há vírgula antes do “e”. Se substituirmos “e outras frutas” por “etc.” (et cetera), temos a mesma situação, sem necessidade de vírgula:

Laranjas, maçãs e outras frutas.

Laranjas, maçãs et cetera.

Laranjas, maçãs etc.

Assim, dado o sentido histórico de “etc.”, não surpreende o posicionamento de gramáticos fortemente latinistas, como Napoleão Mendes de Almeida:

Assim como antes da conjunção “e” só em raros casos se emprega vírgula, da mesma maneira só raras vezes se emprega vírgula antes do etc., pois essa locução encerra a conjunção “e”, razão esta que condena, ainda, o emprego dessa conjunção antes do etc., sendo errado dizer “…peras, maçãs e etc.”

— Dicionário de Questões Vernáculas, verbete “etc.”

Questão encerrada? Bem… nem tanto.

A língua não para…

Com o passar do tempo, o sentido de “etc.” dissociou-se da conjunção “e” especificamente. E, assim como dizemos “maçãs, laranjas, dentre outras” (em que a vírgula corretamente aparece antes de “dentre outras”), passou-se a interpretar “etc.” da mesma forma, como se fosse um elemento qualquer posterior (e não uma abreviação com a conjunção “e”): 

Carros, motos, dentre outros

Carros, motos, entre outras coisas

Carros, motos, etc.

 

Essa interpretação ganhou força, e, hoje, vários gramáticos usam vírgula antes de “etc.”, como Bechara, Rocha Lima e Celso Cunha:

(…) por exemplo, Pala, Vala, Mala, Tala, Rala, etc.

— Moderna Gramática Portuguesa (Evanildo Bechara; 2009)

Conforme a época, o lugar, a moda, etc.;

— Novo Dicionário de Dúvidas da Língua Portuguesa (Evanildo Bechara; 2018)

(…) em vastíssima atividade do magistério da pena (livros didáticos, teses de concurso, ensaios doutrinários, etc.)

— Gramática Normativa da Língua Portuguesa (Rocha Lima; 2011)

Nos verbos terminados em -guar, -quar, e -quir (aguar, apaziguar, enxaguar, obliquar, delinquir, etc.)

— Nova gramática do português contemporâneo (Celso Cunha, Lindley Cintra; 2017)

 

Cegalla, por exemplo, não se pronuncia explicitamente sobre a possibilidade de vírgula antes do “etc.”. Porém, no texto corrido de sua Gramática, há exemplos vários que demonstram seu posicionamento neste assunto: 

Daí a existência de falares regionais e de vários níveis de fala: culta, popular, coloquial, etc.

— Novíssima Gramática da Língua Portuguesa (Domingos Paschoal Cegalla)

(…) à altura de. Apto para (missão, tarefa, cargo, etc.)

— Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (Cegalla; 2017)

 

Com base nesses exemplos, seria difícil sentenciar ser terminantemente errado usar vírgula antes de “etc.”, pois alguns estudiosos de renome utilizam esse formato.

A vírgula em inglês 

Antes de concluirmos este artigo, é importante falar brevemente sobre o inglês, pois somos avassalados por conteúdos nesse idioma. Por conseguinte, encontramos muitas traduções que carecem de esmero — de fato, frequentemente são produto de traduções automáticas e/ou de inteligências artificiais. 

Neste sentido, é comum verter, ao português, a vírgula existente em textos ingleses antes de “etc.”. Pois o incauto (incluindo-se aí o robô da tradução automática) acha que o sistema de pontuação do inglês é idêntico ao do português:

Google Tradutor automaticamente transfere a vírgula do inglês para o português.

Como podemos ver na imagem acima, o Google Tradutor não vê qualquer problema em reutilizar a pontuação inglesa. Entretanto, há aqui uma enorme pegadinha. Para entendermos a magnitude do problema, é necessário fazer o trajeto inverso. Vamos traduzir, agora do português para o inglês, a frase abaixo:

Frutas, verduras e carne.

Como você acha que deveríamos traduzi-la ao inglês? Pense um pouco.

Pensou? Aqui está a resposta:

Fruits, vegetables, and meat.

Notou algo de estranho? Para facilitar a visualização, vamos colocar as duas frases uma abaixo da outra:

Frutas, verduras e carne.

Fruits, vegetables, and meat.

É isso mesmo que você está vendo: uma vírgula antes de “and”. Em inglês, a regra geral é utilizar a vírgula antes da conjunção aditiva “and” (nosso “e”). É uma longa estória, mas, de forma resumida, em inglês, mostra-se a divisão dos itens por meio da vírgula — a chamada “serial comma” (vírgula enumerativa), tradicionalmente chamada de “Oxford comma” (e, mais recentemente, de “Harvard comma”). Ou seja, quando temos uma enumeração de itens, A, B e C, utiliza-se, no inglês, a vírgula para separá-los, todos, mesmo antes do “e”. Isso é feito para indicar que se tratam verdadeiramente de itens distintos. Observe:

[Fruits], [vegetables], and [meat]

[Frutas], [verduras] e [carne]

A presença da vírgula gera a contagem de três itens: 1) frutas, 2) verduras e 3) carne.

Já a ausência da vírgula, em inglês, faria com que tivéssemos dois itens (e não três):

[Fruits], [vegetables and meat]

[Frutas] e [verduras (com) carne]

É como se o item “verduras e carne” fosse uma coisa só (e não itens separados). Algo como “verduras misturadas com carne”.

Podemos visualizar melhor a diferença nestas duas frases:

1. We went on a stroll with our dogs, grandma, and grandpa. (Com vírgula)

Literalmente: Saímos para passear com nossos cachorros, vovó, e vovô.

2. We went on a stroll with our dogs, grandma and grandpa. (Sem vírgula)

Literalmente: Saímos para passear com nossos cachorros, vovó e vovô.

Na frase 1, com a presença da vírgula, temos três itens: a) os cachorros, b) vovó e c) vovô. Trocando em miúdos, a frase significa que passeamos com três figuras distintas: 1) os cachorros; 2) vovó; e 3) vovô. É como se disséssemos:

Saímos para passear com nossos cachorros, com nossa vovó e com nosso vovô.

Já na frase 2, sem a vírgula, temos dois itens: a) os cachorros; e b) “vovó + vovô” (um único elemento combinado). Para o falante nativo de inglês, o item combinado “vovó e vovô” explica a palavra anterior, “cachorros”. Ou seja, seria o equivalente em português a:

Saímos para passear com nossos cachorros: vovó e vovô.

Quer dizer, “vovó e vovô” são os nomes dos cachorros. Ou o que é pior: o falante considera seus avós como cachorros.

Para o falante inglês, portanto, a vírgula enumerativa (aquela inserida em enumerações antes da conjunção aditiva “e”) separa todos os termos individualmente.

Entendeu a lógica utilizada na língua inglesa? Tente apontar a diferença entre as duas frases abaixo:

1. I traveled with Paul, a cook, and a painter. (Com vírgula)

Literalmente: Viajei com Paulo, um cozinheiro, e um pintor.

2. I traveled with Paul, a cook and a painter. (Sem vírgula)

Literalmente: Viajei com Paulo, um cozinheiro e um pintor.

Na frase 1, com a presença da vírgula, temos três itens: a) Paulo, b) cozinheiro e c) pintor. Trocando em miúdos, a frase significa que viajei com três pessoas: 1) Paulo; 2) um cozinheiro; e 3) um pintor.

Já na frase 2, sem a vírgula, temos dois itens: a) Paulo; e b) “cozinheiro + pintor” (um único elemento combinado). Para o falante nativo de inglês, essa frase significa que viajei apenas com “Paulo”, que tinha duas profissões concomitantes (ele era ao mesmo tempo “cozinheiro e pintor”).

Em português, essa diferenciação não se faz pela vírgula, mas pela própria construção da frase:

1. Viajei com Paulo, um cozinheiro e um pintor. (Três pessoas)

2. Viajei com Paulo, cozinheiro e pintor. (Uma pessoa)

O “um” muda o sentido da frase, sem necessidade de inserir a vírgula. É um dos muitos exemplos que comprovam que traduzir não se resume meramente a “trocar uma palavra (da língua 1) por outra palavra (da língua 2)”, mas exige a profunda compreensão acerca da própria formação de ambos os idiomas, em seus elementos mais basilares; e — importantíssimo — as próprias culturas que as utilizam. Ou seja, trata-se de verter o significado por detrás das palavras (na primeira língua) a uma construção frasal (na segunda língua) que seja compatível com o significado (e não meramente a palavra) da primeira. Nesse sentido, a tradução é menos “palavra por palavra” e mais “significado por significado”. E aqui incluem-se também as regras de pontuação, que podem ser diferentes de um idioma para outro.

Portanto, basear-se no inglês para definir a utilização da vírgula em português é uma armadilha. O recurso de comparação entre línguas diferentes pode ser utilizado, mas é importante lembrar-se de que línguas diferentes podem apresentar regras diferentes. Por isso, é preciso conhecer profundamente as duas para tecer comparações válidas e honestas.


Códex da antiguidade.

Conclusão

Usa-se vírgula antes de “etc.”? Preferimos a versão sem vírgula, por parecer-nos mais conforme ao sentido original dessa abreviação (“e outras coisas”). Afinal, nela temos a conjunção de adição “e”, que, ao contrário do inglês, não é antecedida de vírgula no português quando enumeramos uma lista de itens.

Porém, muitos gramáticos de prestígio usam vírgula antes de “etc.”, o que, em teoria, validaria a correção de seu uso por nós, falantes do idioma.

Em resumo, ambas as opções são aceitas hoje em dia. A escolha fica a gosto do freguês.

No entanto, quer seja ou não usada a vírgula, ambos os lados do debate concordam em alguns pontos:

1. Se houver uma repetição de “etc.” sequencialmente (“etc., etc., etc.”), a vírgula passa a ser obrigatória, pois temos uma enumeração sequencial como outra qualquer. Esta mesma regra vale para a conjunção “e”:

Ele corria, e caía, e rolava, e ria, e levantava-se de novo, apenas para cair outra vez.

Isso aí é tudo fruta: maçã, banana, laranja, morango, uva, etc., etc., etc.

2. Não se deve usar a conjunção “e” antes de “etc.”:

Preciso comprar leite, ovos, pão, queijo e etc. (Errado)

Preciso comprar leite, ovos, pão, queijo etc. (Correto)

Isso acontece porque a conjunção “e” já existe em “etc.” (et cetera: e outras coisas desse tipo). Senão, a frase teria duas letras “e”: “…queijo e e outras coisas”.

3. Não se usa “etc.” com pessoas:

Meus melhores amigos são Paulo, José, Maria etc. (Errado)

Isso se explica pelo sentido histórico da palavra “cetera”, que está no gênero neutro latino, correspondente ao plural do pronome “isso” (que não temos em português), usado para se referir a coisas, não a pessoas.

4. Quando “etc.” é a última palavra da frase, o ponto do “etc.” absorve o ponto da frase, para evitar a duplicação:

Ao viajar, não se esqueça de levar passaporte, roupas, passagem de avião etc.. (Errado)

Ao viajar, não se esqueça de levar passaporte, roupas, passagem de avião etc. (Correto)

5. Da mesma forma, não se usa reticências após “etc.”. É preciso escolher uma das duas opções:

A loja vende muitos artigos, como roupas, sapatos, acessórios, produtos de beleza etc. (Errado)

A loja vende muitos artigos, como roupas, sapatos, acessórios, produtos de beleza etc. (Correto)

A loja vende muitos artigos, como roupas, sapatos, acessórios, produtos de beleza… (Correto)

6. Em enumerações separadas por ponto e vírgula ( ; ), o “etc.” é precedido da pontuação, quando faz parte da enumeração geral:

A empresa representa várias marcas de sucesso, como Toyota, do Japão; Adidas, da Alemanha; Coca-Cola, dos Estados Unidos; etc.

Em suma, embora recomendemos não usar vírgula com “etc.” (afinal, os itens 2 e 3 acima mostram que o sentido histórico da abreviação permanece, mesmo para quem defende o uso da vírgula), a escolha é pessoal. Pode-se usar ou não a vírgula antes do “etc.” — mas, uma vez feita a escolha, ela deve ser mantida. Evite usar regras diferentes no mesmo texto (p. ex., vírgula antes de “etc.” em um parágrafo, e ausência da vírgula no outro), pois isso passa a ideia de desleixo e/ou que o autor desconhece a regra — além de confundir o leitor. Ao escolher seu estilo preferido, utilize-o uniformemente em todo o texto.

Reportar

Reportar

Quem já não ouviu o verbo “reportar” em português? A globalização e a adoção de novas tecnologias trouxeram muitas coisas boas, inclusive a tradução automática. Inevitavelmente, porém, o mau uso desses recursos terminaram por introduzir traduções rudimentares e equivocadas no português. Um desses erros foi a forma como verteram o inglês “to report”: ao contrário do que muitos acreditam, esse falso amigo não significa “reportar” em português.

Às vezes, o uso incorreto de termos pode prejudicar a compreensão.

Falsos amigos

Já falamos brevemente sobre isso num artigo anterior. É normal encontrar, em idiomas diferentes, palavras que se assemelhem bastante, embora não signifiquem a mesma coisa. Na década de 90, os divertidos comerciais do CCAA ganharam fama, mostrando várias dessas “falsas amizades”. Eram situações em que brasileiros tentavam se comunicar com falantes de inglês ou espanhol e sempre terminavam se encrencando.

Isso acontece. Entre inglês e português, há muitas palavras categorizadas como falsos amigos. São termos que se parecem muito um com o outro, e costumam vir da mesma raiz. Porém, em algum momento, terminaram por divergir no significado, e hoje denotam coisas distintas, malgrado sua semelhança. É preciso ter muito cuidado com essas palavrinhas, por transmitirem um conteúdo bem diferente daquele que conhecemos. Em inglês, por exemplo:

  • Actual: parece-se com “atual”, mas significa “verdadeiro, real”.

  • Actually: da mesma forma, esse advérbio não significa “atualmente”, mas “na verdade”.

  • Alias: não significa “aliás”, mas sim, “pseudônimo”.

  • Cigar: não significa “cigarro”, mas “charuto”.

  • Jurisdiction: parece-se muito com “jurisdição”, mas significa “competência”.
  • To report: não significa “reportar” (remeter, dar por causa), mas sim “relatar”.

Em português

Um dos falsos amigos, portanto, equivocadamente traduzidos do inglês foi justamente o verbo “to report”, que não é a mesma coisa que “reportar”. Sim, este último verbo existe em português, mas carrega acepções bem diferentes, baseadas na noção de remeter.

Por exemplo, um de seus significados é o de “fazer voltar”, “mandar de volta” ou “retroceder”, como nesta frase:

Essa música sempre me reporta à minha infância.

Quer dizer, a canção “manda de volta” — remete — a pessoa de volta à infância.

Desta acepção de “remeter” temos outra relacionada: a de “dever-se a algo”. Por exemplo:

Reportava sua sorte ao afinco.

Por isto, quer-se dizer que remetia sua sorte ao afinco, vale dizer, a “sorte” que tinha, em verdade, devia-se ao trabalho duro. É o mesmo caso de:

Reportou as boas notas da escola ao estudo diário com a mãe.

Em outras palavras, as boas notas da escola deviam-se ao fato de ter estudado com a mãe todos os dias. Assim como, no exemplo anterior, a “sorte” que tinha se devia, em verdade, ao trabalho duro. É outro modo de dizer “dar como causa”.

Também é possível utilizar a acepção de “remeter” com o significado de “fazer alusão a”, neste sentido:

Não parava de reportar os ouvintes ao mesmo assunto.

Quando nos reportamos a um assunto, estamos nos referindo a um assunto, quer dizer, estamos remetendo nossos ouvintes a um assunto específico.

Por fim, existe ainda outro sentido, muito menos utilizado em português, que é o de “conter, atenuar, controlar”. Por exemplo:

Lutou, debalde, para reportar a forte emoção.

No exemplo acima, quer-se dizer que a pessoa se esforçou (em vão) para conter a emoção; que tentou refrear, controlar o que sentia, mas que, por fim, não conseguiu.

Assim, o significado de “reportar” em português não é o mesmo de “to report” (relatar) do inglês. Por isso, seu uso desta forma é equivocado.

Aliás, o próprio substantivo “report” significa “relato, relatório”:

I will submit my report today.

Vou entregar meu relatório hoje.

Ninguém utiliza “vou entregar minha reportagem hoje”. Da mesma forma, o verbo: não devemos dizer “reportar”, mas sim, “relatar”.

Eles se parecem, mas não são a mesma coisa.

Num passado distante

Os significados que hoje temos em português assemelham-se àqueles de nossa língua-mãe, o latim. A palavra vem da união de “re-” com o verbo “portare”.

A partícula “re-” é velha conhecida nossa, encontrando-se em palavras como “refazer” (fazer de novo), “retocar” (quando “tocamos de novo” algo já finalizado, é porque desejamos corrigi-lo ou aperfeiçoá-lo), “reaprender” (aprender de novo) e por aí vai.

Já o latim “portare” significa isso mesmo que você está pensando: portar, carregar, levar. Ou seja, em latim, “reportar” significava “levar novamente, carregar novamente” ou “voltar novamente, retroceder novamente”. Por exemplo:

Lautusque ad hospitium Milonis ac dehinc cubiculum me reporto.

(E, já arrumado, volto à casa de Milo e vou-me novamente [me re-porto] para o quarto.)

— Apuleio, Metamorfoses, I.25 (última linha).

Ou seja, “me reporto” aqui tem o sentido de “porto a mim mesmo de volta”, “porto, carrego, levo meu próprio corpo” de volta ao quarto.

Outro exemplo:

Saepe oleo tardi costas agitator aselli vilibus aut onerat pomis, lapidemque revertens incusum aut atrae massam picis urbe reportat.

(Além disso, frequentemente, o carroceiro carrega os flancos do burrico, que já é lerdo, com óleo ou frutas baratas; e, ao voltar da cidade, traz [de volta; porta de volta — re-porta] consigo uma pedra de afiar incusa ou uma massa de piche negro.)

— Virgílio, Geórgicas, I.273-275.

Aqui, Virgílio diz que o carroceiro “reporta” (“traz/porta de volta”) à aldeia coisas adquiridas na cidade.

É do sentido de “portar novamente” que proveio o sentido de “remeter” (portar/mandar de volta) que temos em português.

Do you speak English French?

O português, por ser um desenvolvimento do próprio latim, herdou deste a palavra “reportar”. Já o inglês — uma língua germânica — adotou “report” a partir do francês (de onde vieram muitíssimas das palavras latinas que perduram no idioma até hoje).

Inicialmente, em francês, o verbo “reporter” (reportar, remeter, levar de volta) significava o mesmo que em suas línguas irmãs:

  • Português: reportar

  • Espanhol: reportar

  • Italiano: rapportare

Porém, por volta de 1260, o vocábulo ganhou o sentido alternativo, na língua francesa, de “redire(recontar, relatar) 1, que foi justamente a acepção que se solidificou no idioma inglês, ao incorporar a palavra proveniente do francês. Desde então, o inglês “to report” significa “relatar”. É desse novo significado, à propósito, que vem o português “repórter” (aquele que relata), oriundo do inglês “reporter”. Se olharmos com cuidado, veremos que só fizemos mesmo adicionar à palavra um acento agudo. É um calque tão direto que mantivemos até o morfema “-er” do inglês (teacher, lawyer, maker, reporter).

Conclusão

É fácil observar que o inglês “to report” e o português “reportar” se parecem muito. À primeira vista, tendemos a achar que são equivalentes. Porém, é importante ter em mente que são falsos amigos e não significam a mesma coisa.

No mundo globalizado atual, traduções de parca qualidade introduziram, no português, o termo “reportar” como sinônimo do cognato inglês. Isso terminou por se imiscuir em nosso cotidiano, e a palavra vem sendo usada com frequência em quase todo lugar, desde programas de GPS como o Waze (“radar reportado à frente”) até o discurso de atendentes (“se tiver qualquer problema, você pode estar me reportando”).

Muitas vezes quando tentamos “falar bonito”, caímos na armadilha de usar acepções provenientes de línguas estrangeiras (atualmente, o inglês), sem sabermos que não são naturais do português. Por exemplo, quando dizemos “reportar” em vez de “relatar”, ou quando usamos o gerundismo (“estarei te enviando”), isso é uma tentativa de manifestar a nosso interlocutor que estamos utilizando um diálogo mais formal. Afinal, ao falarmos com um cliente, desejamos tratá-lo com respeito.

Isso acontece porque associamos a formalidade a construções linguísticas mais incomuns do idioma — afinal, o que usamos no dia a dia é geralmente informal. Logo, formas incomuns no português equivaleriam à norma culta. Essa lógica não está errada, mas em alguns casos (e este é um deles), ela esbarra em uma grave problemática: a de que essas formas (“reportar”, gerundismo) são incomuns apenas porque realmente não fazem parte da língua portuguesa. Foram importadas forçosamente do inglês por maus tradutores e/ou por traduções automáticas, como o Google Tradutor (e, mais frequentemente, por “inteligências” artificiais como ChatGPT, Claude e outros).

Infelizmente, há muitíssimos casos em que empresas, na tentativa de baratear custos, utilizam-se de inteligência artificial, ou até de tradutores humanos que não são falantes nativos de português (infelizmente, isso acontece muito mais do que você imagina). Consequentemente, o Brasil recebe um enorme fluxo de material do exterior com péssima qualidade em nosso idioma.

Uma vez aqui no Brasil, por sua vez, como não temos um ensino de qualidade, tomamos essas traduções como sendo a tal norma culta. Os mais afetados são precisamente a camada mais humilde da população — ironicamente, a mais carente de traduções de alta qualidade. Ora, a camada mais humilde é a que menos teve (acesso à) educação, e justamente a que está na linha de frente dos textos com qualidade medíocre. Pior: sem jamais terem sido expostos ao alto padrão de uso da língua, exatamente pela rasa escolaridade. Sem um parâmetro sólido de comparação (p. ex., “não era assim que Machado e Alencar se expressavam — essa construção não é normal na língua culta do português”), tomaram abertamente para si essas traduções mal feitas, acreditando que eram de alta qualidade. E os erros terminaram incorporando-se ao português.

A partir de agora, porém, você já sabe que “reportar” não significa “relatar”, mas “remeter” (“relatar” é o significado do inglês “to report”). E já pode substituir frases como:

  1. Reporte o erro encontrado
  2. Vou reportá-lo ao supervisor
  3. Ele me reportou o que aconteceu
  4. Vamos reportar o ocorrido
  5. Estão reportando o caso na TV

por (por exemplo):

  1. Informe o erro encontrado
  2. Vou dar queixa a meu supervisor
  3. Ele me comunicou o que aconteceu
  4. Vamos relatar o caso
  5. Estão noticiando o caso na TV

Este segundo conjunto de frases traz formulações mais naturais ao português, ao contrário das traduções formulaicas e incorretas utilizadas no primeiro quinteto de exemplos.

Portanto, da próxima vez em que bater a vontade de dizer “reportar” no sentido de “relatar”, é só utilizar “relatar, informar, comunicar”, ou até “dizer, narrar, contar”.

Referências

  1. Récits d’un ménestrel de Reims, séc. XIII s., éd. N. de Wailly, § 114.[]
Pensar fora da caixa

Pensar fora da caixa

Você provavelmente já (ou)viu a frase “pensar fora da caixa”. A expressão, que provém do inglês e significa “pensar fora dos padrões convencionais”, na verdade é um estrangeirismo.

É fácil observar que se trata de um estrangeirismo ao realizarmos um simples exercício: se perguntarmos a um falante nativo de português o significado dessa tal “caixa”, o mais provável é que ele pense, literalmente, em uma caixa:

Caixa: seria esta a tal “box”?

Essa é a primeira pegadinha. Um dos sinais de que a expressão “pensar fora da caixa” é um estrangeirismo deve-se ao fato de que nossa noção de “caixa”, em português, é um pouco diferente da noção de “box” em inglês.

Vamos chegar lá. Mas, para entendermos tudo isso melhor, é preciso antes conhecer a origem da expressão.

Origem

A forma da expressão, como hoje a conhecemos, provém do antigo exercício de unir 9 pontos com linhas retas. O mesmo passatempo que viemos a conhecer ainda na infância:

Jogo de unir os nove pontos com uma única linha.

Esse joguinho tornou-se muito popular nos EUA em meados de 1900, e muitas revistas e jornais incluíam o exercício em suas edições.

Assim como na imagem acima, o exercício, nesses periódicos, trazia os pontos delimitados por um quadrado externo. A grande pegadinha estava justamente na regra: “ligue os pontos com 4 (ou menos) linhas retas, sem levantar a caneta do papel”. O bom entendedor percebia que não havia qualquer menção à delimitação (ou seja, ao quadrado) exterior. A solução, portanto, era desprezar as bordas da imagem, pautando deliberadamente sobre elas as linhas traçadas.

De fato, mesmo nos casos sem quadrado fisicamente demarcado — como nos desenhos que, quando crianças, fazíamos em folhas de papel —, tendemos a visualizar a delimitação de forma abstrata. O quadrado é criado mentalmente (e involuntariamente, de forma inconsciente) pela disposição organizada dos pontos. É como uma ilusão de ótica:

Ilusão de ótica: 3 ou 4 extremidades?

Em 1969, para ensinar a resolver o problema, Norman Vincent Peale, em artigo do Chicago Tribune (ed. 25/10/1969, p. 13) instrui:

Step outside the box your problem has created within you and come at it from a different direction.

Ou seja, era necessário extrapolar os limites do quadrado criado pelo problema, atacando-o a partir de uma perspectiva diferente. Pois o problema dos 9 pontos cria mentalmente em nós uma delimitação (o quadrado). Para solucioná-lo, é preciso enxergar as coisas de forma objetiva, sem os bloqueios mentais que nós mesmos criamos.

Com o passar dos anos, frases como “think outside the dots” (pense fora dos pontos) e “think outside the box” (pense fora do quadrado) foram sendo mais e mais utilizadas. De fato, tornaram-se tão comuns que, em 1976 (na Inglaterra) e em 1978 (nos EUA), elas já eram utilizadas em outros contextos, de forma desassociada ao jogo. Ou seja, terminaram por se integrar à cultura dos países de língua inglesa.

Aqui, percebemos dois elementos importantes: em primeiro lugar, a efetivação de um processo de integração da expressão à própria cultura inglesa; e, em segundo, o fato linguístico envolvendo uma nuance específica da palavra “box”. Esta, em inglês, possui conotação mais ampla que em português, englobando também formas bidimensionais. Enquanto “caixa”, em português, possui aspecto tridimensional (3D — vide a primeira imagem deste artigo), o “box” inglês pode muito bem ser 2D. De fato, é comumente utilizado nesse sentido, diferentemente do português.

Para ilustrar essa diferença, façamos outro pequeno exercício: se momentaneamente colocarmos de lado o inglês e pensarmos só em português, como um falante de nosso idioma se referiria às linhas pretas que delimitam cada uma das cenas nos quadrinhos abaixo?

Quadrinhos do Homem-Aranha

O próprio nome (quadrinhos) já dá a ideia do que o falante de português diria. Cada uma dessas cenas são envoltas por “quadrados” (ou “retângulos”), talvez até “painéis”. Certamente, o falante nativo de português, sem influência externa e utilizando o arcabouço exclusivo do próprio idioma, jamais chamaria esses traçados de “caixas”. Ao contrário do inglês, cujo falante nativo prontamente diria “boxes”, e não “squares” (quadrados).

Exatamente a mesma coisa acontece com as seções demarcadas por quadrados nos jornais:

Como também acontece com o quadrado em volta dos nove pontos. Em português, “quadrado”; em inglês, “box”:

Para traduzir, basta trocar as palavras

Muitos têm a impressão (errônea) de que, para traduzir, basta trocar as palavras de um idioma por palavras no outro idioma:

The pen is blue
A caneta é azul

É uma visão simplista do processo de traduzir. Basta mudarmos a frase para “the blue pen” para derrubar a tese:

The blue pen
A caneta azul

Neste exempo, já não há mais correspondência direta com o português: é necessário inverter a ordem das palavras (afinal, ninguém diz “a azul caneta”). Da mesma forma, na expressão (muitíssimo comum) “there’s no ‘i’ in team”, é impossível traduzi-la como “não há ‘i’ em equipe”, pois claramente há (em “time” também). Obviamente, portanto, não se trata apenas de “trocar as palavras de um idioma por outro”. A tradução é um processo complexo que tenta adequar textos de idiomas diferentes não só gramaticalmente (morfológica, sintática e estilisticamente), mas também culturalmente. Por vezes, até fonologicamente, como é o caso da poesia.

Nesse sentido, “box” nem sempre será traduzido por “caixa”. Esse fato ilustra bem uma das razões por que o tradutor evita verter palavras soltas. Em português, temos uma piada sobre o advogado que responde toda e qualquer pergunta com “depende”, mas algo semelhante ocorre no universo linguístico:

— O que é “whiplash” em português?

Depende. Em que contexto?

Isso acontece por (principalmente) dois motivos. O primeiro deve-se a uma característica comum das línguas naturais: a polissemia. Quer dizer, palavras — em qualquer idioma, não só no português — geralmente possuem mais de um significado, e o contexto apontará qual desses significados se busca no caso concreto. Por exemplo, em português, “manga” pode se referir:

1) à fruta; ou

2) à manga de camisa.

Em algumas regiões do Brasil, “mangar” também é verbo e significa “rir-se, debochar de alguém”. Neste caso, “manga” seria:

3) a terceira pessoa do singular do verbo “mangar”: ele(a) manga de alguém.

O segundo motivo é que idiomas diferentes se expressam de formas diferentes. Enquanto um prefere a palavra “X”, outro prefere a palavra “Y”. Enquanto um prefere usar um substantivo, o outro prefere usar um verbo.

Por exemplo, o incauto que lê “vaso” em espanhol pensa que significa “vaso” também em português, quando, na verdade, significa “copo”. Já “copo” se parece muito com o espanhol “copa” (que não tem nada a ver com a “copa” em português), que significa “taça”. Já “taza” em espanhol significa “xícara”. E o “vaso” em português corresponde à “jardinera” em espanhol (jardinera, o vaso grande para plantas; maceta, o vaso menor, para flores de mesa). Veja que confusão. Embora tenhamos as mesmas palavras, cada idioma os utiliza com significados diferentes.

ESPANHOL
vaso
copa
taza
jardinera/maceta
antecocina
PORTUGUÊS
copo
taça
xícara
vaso
copa

Outro exemplo, ainda mais ostensivo: “estou com saudade de você”. Temos aqui a troca imediata de um substantivo (“saudade”) por um verbo em inglês: “I miss you”. Ou seja, em inglês não se tem algo (“saudade”): falta-se algo (a pessoa querida). O significado é o mesmo, mas a forma linguística utilizada para se atingir o mesmo objetivo é diferente. As diferenças entre idiomas não se dão apenas em nível morfológico, mas em nível sintático, e até (por que não?) em nível estilístico. Cada língua tem seu modo característico de se expressar.

Isso também pode ser visualizado em frases mais complexas, principalmente se utilizarmos uma construção extremamente comum a nosso idioma. Por exemplo, “beber bastante água faz bem” traz uma estrutura tipicamente portuguesa. Como vertê-la ao inglês? O falante de português jamais conseguirá chegar na resposta certa se tentar traduzir a frase palavra por palavra. É que, assim como no exemplo do parágrafo anterior, aqui não há uma correspondência exata morfológica nem sintática. O inglês prefere uma construção bem diferente: “drinking plenty of water is good for you”.

Nos dias de hoje, esse erro é cometido às avessas. O tradutor do filme ouve o ator dizer “good for you” e prontamente tasca na legenda: “bom pra você” — quando a verdadeira tradução é “faz bem”.

Ross e Joey, no episódio “The One with Phoebe’s Uterus” (Friends).
Veja trecho no YouTube.

Da mesma forma, o mau tradutor verte “to think outside the box” como “pensar fora da caixa”. É um equivoco porque, ao contrário do inglês, que passou anos cozinhando a frase até que se tornasse uma expressão cultural desassociada do jogo, o português não passou por esse processo. A expressão jamais foi utilizada por um dos grandes escritores da língua portuguesa (independentemente do país, frise-se), pois ela obviamente surgiu a partir do precário decalque do inglês, no mundo globalizado atual. Não temos (nem nunca tivemos) a cultura da “caixa”, até porque a tradução de “box” nesse contexto seria “quadrado”. E assim como não dizemos “está chovendo gatos e cachorros” (do inglês it’s raining cats and dogs, cujo equivalente seria “está chovendo canivetes”) nem “custa um braço e uma perna” (to cost an arm and a leg — “custa os olhos da cara”), tampouco deveríamos dizer “pensar fora da caixa”. Não é parte de nossa cultura, nem corresponde à estrutura adequada ao português. Trata-se de frase compelida, por meio de tradução forçada, a entrar no idioma.

É que provérbios e expressões idiomáticas são fenômenos essencialmente culturais. Traduções literais (ao pé da letra), que já não fazem muito sentido normalmente, tendem a piorar em “frases feitas”. Como manifestação cultural própria dos países de língua inglesa, “to think outside the box” deveria ser vertido ao português de forma que se encaixasse melhor na cultura de nosso idioma. Algo que não vem acontecendo hoje devido à influência avassaladora do inglês sobre o português, aliado à escassez de bons profissionais no mercado e ao desprestígio da própria profissão, como um todo, no admirável mundo novo do Google Tradutor.

Esse fenômeno pode ser observado principalmente nas áreas de conhecimento que mantêm contato mais imediato com as línguas estrangeiras. Nas empresas, temos o jargão corporativo; nos call-centers (o próprio nome já corrobora a situação), o material de marketing telefônico (precisamente a origem de uma das maiores calamidades a assolar o português moderno: o gerundismo); na informática, os termos de tecnologia. Aqui, você provavelmente deve estar pensando em “mouse” e “CD”, mas é também deste último ramo que provém o termo “caixa de seleção” — evidentemente oriundo de “check box”. A prática é tão forte que até mesmo os verbos do inglês foram aportuguesados, e “tick the boxes” (assinalar os marcadores) virou “ticar as caixas”. Porque não bastava o decalque, precisávamos também de um empréstimo linguístico.

Conclusão

O que fazer, então? É errado usar “pensar fora da caixa”?

Depende.

Diz o ditado inglês que “language and culture go together” (língua e cultura são inseparáveis). Nesse sentido, o conselho seria evitar a expressão, por ser uma figura cultural inglesa que não faz sentido em português. Quem não mora nos grandes centros urbanos nem tem pronto acesso ao inglês e a anglicismos como esse, não sabe o que significa “pensar fora da caixa”. A expressão não faz sentido em nosso idioma — sequer sabemos visualizar a “caixa” correta a que se refere a expressão. Não admira que ela sequer exista oficialmente em nossa língua, sendo preterida tanto por dicionários quanto por gramáticas e manuais.

Por outro lado, seria complicado recriminar o sujeito que utiliza a expressão à mesa de bar. Primeiro, não há lei cominando pena a quem fala “errado”. Segundo, mesmo que houvesse, como se executariam essas leis? Quem falasse “nós vai” levaria multa? Ou seria caso de cadeia? Se multa, de quanto? Quem seria o órgão competente para executar essas leis? Pior: quem será intitulado o dono da verdade para decidir o que se classifica como “errado” na língua? Pois brasileiro nenhum segue as regras da gramática prescritiva a ferro e fogo: quem é do sul não se apega muito a conjugação, dizendo “tu vai” (e não “tu vais”); do Rio para cima, transformam “s” em “r” (mermo, mermão); e absolutamente ninguém deste país segue as regras de colocação pronominal (que, admitamos, são baseadas na prosódia do português europeu, daí nossa manifesta incapacidade em entender aquele sem-número de regramentos, com quantidade ainda maior de exceções). Qual foi a última vez que você se pegou utilizando a mesóclise? Ou que ouviu o caixa de supermercado usar “vós”? Mal sabemos a diferença entre “vir” e “ver” (conte quantas vezes você ouve diariamente frases como “se ela vir pra cá”, em vez de “se ela vier”). E ninguém parece ter a menor ideia da diferença entre “dizer” e “falar”. Imagine o quanto mais há que não seguimos dessas regras. Oficialmente criminalizar o uso do português “errado” gera mais problemas do que os resolve.

Assim, embora utilizar essas expressões anglicizadas não seja crime, o melhor, provavelmente, seria tentar evitar a expressão no falar informal. Mas sem se avexar. Afinal, é impossível evitar o giro do mundo, e língua que não muda nem sofre influência é língua morta. Se passar despercebido e a “caixa” aparecer, deixe estar. Mas em textos formais, como trabalhos escolares e universitários, monografias, teses, publicações em livros e periódicos, textos públicos e governamentais, e até mesmo em seu blog e/ou canal do YouTube (por motivos de influência sobre o grande público), o melhor seria mesmo utilizar outras expressões, como “pensar criativamente”, “pensar de forma inovadora”, “pensar fora dos padrões convencionais”, “ver além do óbvio”, “desconsiderar as limitações aparentes”, “pensar mais além”, “deixar de lado noções preconcebidas” e até mesmo “esqueça isso”. Há um número virtualmente ilimitado de opções, e a melhor será sempre a que se encaixar com mais perfeição ao caso concreto — ou, para usar a palavra mágica da tradução, ao contexto.

Ou x Nem

Ou x Nem

Ou x Nem: dois mundos diferentes

O problema

Você vai a uma loja e lá está, bem no cartaz de entrada:

Infelizmente, não temos café da marca X ou da marca Y.

Ou, ao ler um manual, você encontra:

Este celular não é resistente a água ou respingos.

Ou talvez você tenha recebido um e-mail promocional com os dizeres:

Esta promoção não se aplica aos estados de Minas Gerais ou Tocantins.

Percebeu algo de estranho? Se não percebeu, você não está só: é cada vez mais comum encontrar a conjunção “ou” usada em frases na negativa. Mas será que é correto?

Pensemos um minuto: qual foi a última vez que você se pegou dizendo (ou ouviu alguém dizer) “não, obrigado. Não gosto de cravo ou de canela”?

Há uma boa chance que você nunca tenha ouvido um falante nativo de português (ou seja, alguém que fale o português como língua-mãe) dizer “eu não gosto disso ou daquilo” — em vez do rotineiro “não gosto disso nem daquilo”. Como também deve ser o caso em expressões como “sem pé nem cabeça”, que ninguém diria “sem pé ou cabeça”.

Com a tal da globalização, a língua portuguesa passou a ser fortemente influenciada pela língua-franca atual: o inglês. Parece coisa nova, mas isso é comum e aconteceu com todos os idiomas da humanidade — em maior ou menor escala, a depender da tecnologia disponível, da benevolência de cada conquistador e, até certo ponto, da abertura linguística e cultural de cada sociedade.

Por exemplo, há 7.000 anos, o sumério influenciava o acádio. Depois, quando os acádios dominaram militarmente os sumérios, a coisa vira ao contrário, e vemos o idioma daqueles influenciando os destes. Há 2.000 anos, o grego influenciava o latim. Há 1.000 anos, o latim e o francês influenciavam o inglês. Hoje, com a internet e a tecnologia, bem como o poderio de EUA e Inglaterra, o inglês influencia basicamente todas as outras línguas do planeta, desde o amárico, passando pelo português, até o zulu.

Somem-se a isso traduções mal feitas (aquelas realizadas por maus profissionais, por profissionais mal pagos ou por indivíduos leigos que não trabalham profissionalmente com tradução) e temos um problema ainda maior. Neil deGrasse Tyson tem uma frase interessante, em que aponta um dos grandes desafios da vida: “saber o bastante para acharmos que estamos certos, mas não o bastante sabermos para que estamos errados”:

Na verdade, trata-se de uma variação do dito popular que lembra que pouco conhecimento é coisa perigosa (em verdade, a máxima é de Alexander Pope, mas terminou caindo na boca do povo). Ou seja, quanto menos uma pessoa sabe, mais ela acha que sabe. O fenômeno tem até nome científico: efeito Dunning-Kruger.

Este é o caso de muitas traduções atuais, em que o parco conhecimento das línguas portuguesa e inglesa pode causar interferências indesejadas. Isso se reflete diretamente na enorme maioria dos erros que acometem a utilização de “ou” e “nem”. Primariamente trazida pela influência do inglês nas traduções de má qualidade no Brasil, a confusão terminou por se difundir entre nós.

Inglês “or” / “nor”

Em inglês, costuma-se usar “or” (ou) em frases negativas, para evitar a chamada “dupla negação” (que, em teoria, produziria uma afirmação). Vejamos o exemplo:

He is not strong or wise

(Ele não é forte nem sábio)

Em inglês, existe também a palavra “nor” (nem). Esta é geralmente utilizada em combinação com a palavra “neither” (nem), que sempre lhe antecede. Veja o exemplo:

Neither snow nor rain

(Nem neve, nem chuva)

— Início do lema informal dos Correios dos EUA

Ou seja, em inglês, “nor” é sempre acompanhado de “neither”. Quando “neither” não está presente, há uma preferência, atualmente, por utilizar a conjunção “or” em frases negativas.

Digo “atualmente” porque nem sempre foi assim. Veja os exemplos abaixo:

“She was not made of tin nor straw”
“Ela não era feita de lata nem de palha”

— Lyman Frank Baum, The Wizard of Oz, Cap. 5.

“There seemed to be no horses nor animals”
“Parecia que não havia cavalos nem [outros] animais”
 

— Lyman Frank Baum, The Wizard of Oz, Cap. 11.

“There were no farms nor houses”
“Não havia fazendas nem casas”

— Lyman Frank Baum, The Wizard of Oz, Cap. 12.

“There was no word from Robert Cohn nor from Brett”
“Não houve notícia de Robert Cohn nem de Brett”

— Ernest Hemingway, The Sun also Rises, Cap. 12.

“But I do not believe anything is that short nor that simple in this country”
“Mas não acredito que algo seja tão breve nem tão simples neste país”

— Ernest Hemingway, For Whom the Bell Tolls, Cap. 5.

“It was not its length nor its breadth, but its height”
“Não era seu comprimento nem sua largura, mas sua altura.”

— Edgar Allan Poe, The Duc de L’Omelette.

“Call not me ‘honour’ nor ‘lordship’.”
“Não me chames ‘meritíssimo’ nem ‘senhorio’.”

— Shakespeare, The Taming of the Shrew, 1.

“I’ll not be tied to hours nor ‘pointed times”
“Não me prenderei a horários nem a ‘horas marcadas’.”

— Shakespeare, The Taming of the Shrew, 3.1.

Todos os exemplos acima, se fossem escritos hoje, seriam redigidos com “or”. No entanto, autores consagrados da língua inglesa (tanto dos Estados Unidos quanto do Reino Unido) utilizaram-se, no passado, da forma “nor” (e não “or”), do mesmo modo como a utilizamos hoje em português. A mudança para “or” em frases negativas, no inglês, é recente. Mas em português, nosso “nem” continua perfeitamente funcional: “ele não é forte nem sábio”; “nem neve, nem chuva”. O risco existe quando o falante de português, desconhecendo tanto a língua inglesa quanto até a sua própria, resolve traduzir ao pé da letra “or” como “ou”. Sem saber, ele insere uma variável incorreta no próprio idioma.

Mas por que incorreta? Vejamos.

“Ou” e “nem” em português

Na língua portuguesa, “ou” possui essencialmente valor positivo. Por “positivo”, queremos dizer que “ou” se refere ativamente a uma escolha entre duas ou mais opções: por isso é chamado de conjunção alternativa. Veja:

Você prefere laranja ou banana?

O falante é direcionado a duas opções (alternativas), devendo escolher entre uma delas (nunca as duas). Por isso, “ou” é geralmente usado em frases afirmativas. Ele pode ser usado em frases negativas, mas, devido a sua natureza de livre escolha, o sentido muda. Observe:

Não temos laranja ou banana.

Se destrincharmos a frase acima, teremos: “não temos laranja ou então não temos banana.”

Em outras palavras, “ou” possui sentido alternativo. Lembra-se da prova de múltipla escolha? É como se o enunciado trouxesse uma questão em que apenas uma das alternativas estivesse correta:

  1. Marque a opção (alternativa) correta.

Nós não temos:

(a) Laranjas

(b) Bananas

Como a conjunção alternativa (“ou”) traz uma ou mais alternativas (daí o nome), em que é preciso escolher apenas uma delas, fica mais fácil escolhê-la em frases afirmativas. Quando utilizamos uma frase na negativa, terminamos sem saber qual é a alternativa correta. A frase do vendedor, portanto, significa que ele não está sem laranjas ou está sem bananas. Ela está sem uma das duas frutas (e não sem as duas juntas): ou faltou banana ou faltou laranja, não se sabe exatamente qual.

Frise-se: “ou” é uma conjunção alternativa, vale dizer, ela te dá duas opções: “ou é isso ou é aquilo — nunca os dois juntos.” Assim, por definição, “ou” traz alternativas, nunca adição.

Por que apenas uma das alternativas, e nunca as duas juntas? Isso acontece porque a conjunção “ou” é alternativa, não aditiva. Se o falante deseja expressar a ideia de adição, quer dizer, se deseja exprimir a ideia de que não há nenhum dos dois itens, será necessário dizer “não temos laranja nem banana.” Esta construção não traz alternativa: não há como escolher (alternar) entre uma e outra, pois não é possível levar nenhuma das duas frutas. Ambas estão em falta.

Em outras palavras, “ou” passa a ideia de alternativa entre duas ou mais opções; enquanto “nem” significa, pura e simplesmente, “também não”.

TAMBÉM NÃO = NEM

Para saber, portanto, que conjunção usar, basta usar a frase inteira, sem elisões. Tomemos os exemplos citados no início deste artigo:

Exemplo 1

Este celular não é resistente a água. Ele também não é resistente a respingos.

Resultado: este celular não é resistente a água nem a respingos.

Exemplo 2

Esta promoção não se aplica ao estado de Minas Gerais. Ela também não se aplica a Tocantins.

 

Resultados:

1. Esta promoção não se aplica ao estado de Minas Gerais nem ao de Tocantins.

2. Esta promoção não se aplica aos estados de Minas Gerais e Tocantins.

“Ou” na negativa

O celular, portanto, que se diz não ser resistente a água ou a respingos, em verdade, está dizendo: ou não é resistente a água… ou então não é resistente a respingos. Um dos dois: você que se vire para descobrir (já que não dizem qual dessas opções/alternativas é válida).

Mas será que “ou” nunca é usado em frases negativas? É, sim. Mas significa sempre uma alternativa (e este é o nome da conjunção!) e não uma adição. Por exemplo:

Paulo não sairá hoje, ou então irá direto para o trabalho.

Há uma negação na frase (“não sairá”), e no entanto a conjunção “ou” funciona. Por quê? Ora, porque a frase indica que Paulo:

ou 1) não sairá para nenhum lugar hoje;

ou 2) se sair, irá direto para o trabalho (e não à praia, digamos).

Ou seja, a frase mostra que, se era intuito de João encontrar-se com Paulo em outro lugar (por exemplo, na farmácia), não será possível: o tête-à-tête, sinto muito, só vai rolar na casa ou no trabalho de Paulo.

Outro exemplo:

Você não vai mais brincar com lápis nem com hidrocor, ou então sofrerá as consequências.

Essa é uma mãe claramente estressada. Mas ninguém a pode acusar de ter cometido um desfalque em português — este continua imaculado. Ela utilizou (corretamente) “nem” para indicar que ambos lápis e hidrocor estão fora do jogo (uma adição de fatores, que, por definição, exclui a conjunção “ou”, por esta última manifestar uma escolha, uma alternativa); em seguida, utilizou (corretamente) a conjunção “ou” para indicar que se trata (agora, sim) da tal alternativa: ou a criança para de riscar a casa ou vai apanhar — escolha (= alternativa) seu veneno com cuidado!

Positivação de uma das alternativas

A utilização da conjunção alternativa “ou” em frases negativas incorre em outra problemática ainda mais grave.

Em frases afirmativas, quando temos uma escolha entre alternativas, isso geralmente significa que, se uma alternativa ocorrer✅, a outra necessariamente ❌não ocorrerá:

Você pode vir aqui ou eu posso ir aí.

Como já indicado anteriormente, a conjunção “ou” traz a escolha de apenas uma das alternativas:

ou 1) você vem aqui,

ou 2) eu vou aí

Daí o nome “alternativa”.

Para utilizar as duas opções juntas, precisamos de uma conjunção aditiva (e), não alternativa (ou).

Ocorre que, na negativa, opera-se a mesma premissa, mas de forma invertida: enquanto uma das alternativas ❌não ocorrerá, a outra alternativa, ✅sim, ocorrerá.

Observe a frase abaixo:

Para conferir informações como data e horário, você não precisa levantar o telefone ou tocar na tela.

MacMagazine, 26/09/2022.

Temos a informação de que:

1) Você não precisa levantar o telefone

ou

2) Você não precisa tocar na tela

É como se fosse necessário escolher entre uma das duas alternativas: ou não levanta o telefone ou não toca na tela. Qual dos dois? Não sabemos. O problema do “ou” em negativas, portanto, é que se temos alternativas, isso significa que uma será válida, enquanto a outra, não. Como aqui estamos na negativa, uma das alternativas não ocorrerá, enquanto a outra, sim, ocorrerá.

Consequentemente, o que está dito, na verdade, é: “ou 1) você não precisa levantar o telefone, ou 2) não precisa tocar na tela. Só vale uma das alternativas: se ❌não precisar levantar o telefone, ✅precisará tocar na tela; por outro lado, se ❌não precisar tocar na tela, ✅precisará levantar o telefone.”

Percebeu? As alternativas sempre direcionam a apenas uma das opções disponibilizadas, automaticamente excluindo as demais. Em frases afirmativas, só uma das duas opçõesacontece (a outra não acontecerá). Em frases negativas, só uma das duas opçõesnão acontece (a outra acontecerá).

O correto, portanto, seria dizer:

Para conferir informações como data e horário, você não precisa levantar o telefone nem tocar na tela.

Ou seja, “você não precisa levantar o telefone, e também não precisa tocar na tela.”

Prova real

Você já deve ter ouvido falar da prova real em matemática. É bem simples: se temos 6 ÷ 3 = 2, tiramos a prova real multiplicando 2 x 3, obtendo o resultado 6. Vemos que a conta de divisão original está correta.

É possível fazer algo parecido na língua portuguesa. Abaixo temos uma frase real em inglês, que precisou ser vertida ao português:

No procedure was conducted to review the safety or regulatory implications of the change. 

O cliente queria que eu revisasse a tradução feita por um terceiro. Pois o tradutor havia vertido a frase ao português assim:

Não foi realizado o procedimento para analisar a segurança ou as implicações regulatórias da mudança.

Vamos aqui relevar a estranha construção da frase em português, óbvio decalque da sintaxe inglesa. Passaremos ao que importa — a conjunção “ou”.

Claramente, o procedimento, citado no exemplo acima, serve para analisar não só a segurança, mas as implicações normativas causadas pelas alterações realizadas. Ou seja, embora a conjunção inglesa utilizada seja “or”, a conjunção em português não deverá ser “ou”, pois não se trata de uma escolha entre duas opções (com descarte obrigatório de uma delas). O procedimento analisa tanto as implicações normativas quanto as questões de segurança. Podemos tirar a “prova real” da frase invertendo-a, desta forma:

O procedimento, que analisaria a segurança e as implicações normativas da mudança, não foi realizado.

Se utilizássemos “o procedimento, que analisaria a segurança ou as implicações”, daríamos a entender que o procedimento só analisa uma das duas opções. Na frase em inglês, porém, é ostensivo que o procedimento não analisou as questões de seguranças e também não analisou as implicações normativas das alterações feitas. Portanto, a conjunção correta não é a de alternativa (ou), mas a de adição, cumulação (e). Uma vez que o correspondente da conjunção afirmativa “e”, na negativa, é “nem”, a frase do tradutor deveria ter sido:

Não foi realizado o procedimento para analisar a segurança. Também não foi realizado o procedimento para analisar as implicações regulatórias da mudança.

⬇️

Não foi realizado o procedimento para analisar a segurança nem [para analisar] as implicações regulatórias da mudança.

A não-realização do procedimento de análise não é uma escolha entre “segurança” ou “implicação regulatória”. Ela abarca ambos. Portanto, o correto é “nem” ou outra conjunção de adição na negativa, como “tampouco”.

Conclusão

A conjunção “ou” em português traz em si a ideia de opção, escolha, alternativa. Por isso, é geralmente usada em frases afirmativas — mas pode ser usada na negativa, embora o sentido de alternativa permaneça (só uma das opções vingará).

Já a conjunção “nem” indica adição, sendo utilizada em frases negativas. Ela traz a ideia de cumulatividade, de adição de elementos. “Nem” é o equivalente negativo da conjunção “e” (adição) encontrada nas frases afirmativas. É o -1 (nem) que espelha o +1 (e). É o Agente Smith atuando como reflexo de Neo.

Em poucas palavras, “ou” possui valor alternativo; “nem”, valor cumulativo, adicional (na negativa; em frases na afirmativa, utilize “e”).

Assim, para descobrir quando é necessário utilizar “ou” ou “nem”, basta destrinchar a frase. Se o intuito for dizer “também não”, use “nem”.

Vejamos alguns exemplos práticos abaixo. Todos eles representam casos reais, encontrados no cotidiano:

1) No site Estante Virtual, determinado sebo assim descreve um de seus produtos:

Neste livro não há marcas ou rasgos”.

A conjunção alternativa “ou” indica que o autor da frase está oferecendo uma alternativa. É como se dissesse: “trata-se de um dos dois: o livro não tem marcas ou então não tem rasgos — não sabemos qual! Compre e descubra”. A verdadeira intenção, que é dizer “neste livro não há marcas e também não há rasgos” será mais corretamente alcançada com a conjunção de adição / cumulação correta: “neste livro não há marcas nem rasgos”.

2) Veja este trecho retirado do site das Americanas:

Dica de segurança: não compartilhe números de cartão de crédito, endereços de e-mail ou outras informações pessoais nessa mensagem.

Da mesma forma, vemos que o site em verdade quer dizer “não compartilhe o cartão de crédito e também não compartilhe outras informações pessoais”; portanto, melhor seria dizer “não compartilhe o cartão, endereços de e-mail nem outras informações pessoais”.

3) O texto abaixo foi retirado do aplicativo do Banco do Brasil:

Elaboramos essa simulação com base nas informações fornecidas por você até aqui, que não constitui garantia ou obrigação de pagamento pela Brasilprev. Não foram considerados resgates, aportes, portabilidades ou alterações em fundos do investimento.”

Tampouco aqui se trata de uma alternativa (na frase “não é uma garantia ou não é uma obrigação”, só valeria uma das duas opções), mas sim uma junção de fatores, uma adição/cumulação de elementos. O que o Banco do Brasil quis dizer foi que a simulação “não constitui garantia de pagamento e também não constitui obrigação de pagamento”. Da mesma forma, não foram considerados resgates, e também não foram consideradas alterações em fundos de investimento. Assim, o correto seria dizer:

Elaboramos essa simulação com base nas informações fornecidas por você até aqui, que não constitui garantia nem obrigação de pagamento pela Brasilprev. Não foram considerados resgates, aportes, portabilidades nem alterações em fundos do investimento.”

4) Este exemplo foi retirado do Escavador:

O Escavador não cria, edita ou altera o conteúdo exibido.

Melhor seria evitar a dúvida: “não cria? Não edita? Ou não altera? Qual dessas opções vale aqui?”. Se o intuito for mostrar que o Escavador não cria, também não edita e também não altera (ou seja, que o Escavador não realiza nenhuma das três ações), a forma correta seria “O Escavador não cria, edita nem altera o conteúdo exibido.”

5) Já este trecho foi retirado de um formulário traduzido do inglês para o português de Portugal:

O sr. pode escolher não completar nada, uma parte, ou a totalidade do inquérito.”

Notamos a negativa (“não completar”) seguida pela conjunção alternativa (“ou”). Se há uma alternativa, isso significa que estatamos tratando de uma escolha, com duas ou mais opções. A escolha final será apenas uma dentre as alternativas oferecidas (e não a adição/cumulação de todas elas).

Como está escrito, o sentido tomado é este: “você escolhe entre responder: a) nenhuma questão; b) parte das questões; c) todas as questões”. Ora, de fato, neste caso, trata-se de uma escolha: o formulário está, literalmente, oferecendo três opções (alternativas!), e o freguês escolhe qual delas prefere seguir. Se ele quiser responder parte do formulário, ele poderá fazer isso; ao invés disso, se quiser responder tudo, também poderá; e ao invés disso, se quiser não responder nada, também isso será possível. Assim, neste caso, a conjunção alternativa (“ou”) foi utilizada corretamente. A frase dá a ideia de alternativa entre uma dessas opções (parte; tudo; nada), não de adição. A escolha de uma automaticamente cancela as outras. É impossível responder “parte” e “tudo” ao mesmo tempo.

Em português brasileiro, soaria mais natural a nossos ouvidos traduzir a passagem como “O sr. pode responder o formulário total ou parcialmente, ou ainda não o responder.” Mas ambas as formas estão corretas.

6) Por fim, este trecho foi retirado do passaporte da República Federativa do Brasil, em sua última página:

NÃO GRAMPEAR OU CARIMBAR ESTA PÁGINA

Se a intenção era dizer “não grampear e também não carimbar esta página”, a redação deveria ser “não grampear nem carimbar esta página”.

O mais interessante é que, logo abaixo, encontra-se a tradução em espanhol:

NO GRAPAR NI SELLAR ESTA PÁGINA”.

A redação em espanhol foi bem mais feliz do que a versão portuguesa.

Enfim, graças ao “nem”, podemos utilizar expressões tradicionais como “sem eira nem beira” (e não “sem eira ou beira”), “não fede nem cheira” (ao invés de “não fede ou cheira”) e várias outras. Essa palavrinha já nos acompanha há muitos séculos — vamos utilizá-la mais frequentemente, nas ocasiões em que for apropriada. Para isso, basta substituir a conjunção suspeita por “também não”. Você prontamente descobrirá a opção correta a ser empregada.

Presidente ou presidenta?

Presidente ou presidenta?

Presidente ou presidenta?

Uma das dúvidas de português que bastante pareceu assolar os brasileiros (e, por conseguinte, uma das perguntas que mais recebi) durante o governo Dilma referia-se ao uso de “presidente” ou “presidenta“. Qual das duas formas estaria correta? Resposta curta: as duas formas estão corretas. Resposta longa? Respire fundo e continue lendo.

 

 

O começo

Para responder de forma satisfatória, a primeira coisa que devemos fazer é descobrir de onde veio a palavra. O português é um desenvolvimento do latim, e é deste idioma que vem “presidente”.

Em latim, “praesidens/praesidentis” é o particípio presente do verbo “praesidere” (“presidir”). Repitamos: um particípio. Daí ter vindo para o português também na mesma forma participial.

Cumpre dizer que, em latim, a palavra existe também na forma de adjetivo. No masculino, o adjetivo masculino é praesidentum. O particípio é praesidens (no nominativo), praesidentis (no genitivo). Foi a construção genitiva que veio ao português — se tivéssemos herdado a forma adjetiva, teríamos “presidento“, e não “presidente“. Afinal, a terminação “-um“, dos substantivos e adjetivos latinos, vira “-o” em português. A fórmula é bastante regular:

LATIM
forum
templum
exemplum
momentum
præsidentum
PORTUGUÊS
foro
templo
exemplo
momento
presidento

Como podemos ver, a forma herdada no português não veio dos moldes do substantivo/adjetivo, mas sim do particípio praesidentis > presidente. De fato, o termo sequer sofreu grande mudança. Apenas simplificamos o ditongo “ae” para “e” e trocamos a terminação “-is” por “-e”. Inclusive, a palavra continua sendo pronunciada como se carregasse o mesmo “-i” final na maioria dos estados brasileiros. Ou seja, no desenvolvimento da palavra do latim ao português, na prática, basicamente cortamos o “s” final: presidentis > presidênti.

O poder do particípio

Se imaginarmos o particípio presente latino como um super herói, seu poder é transformar verbos ativos em substantivos e/ou adjetivos.

“Transformar verbos em substantivos?”, você pergunta. “Como funciona isso na prática?” Simples: se tomarmos o verbo latino “laudare” (laudar, em português) e lhe aplicarmos a flexão do particípio presente, ele se transformará em “laudans, laudantis” (aquele que lauda: “laudante“). Ou seja, é como se o particípio desse um nome a quem pratica o verbo. Se o verbo é “palestrar”, o nome de quem pratica esse verbo (quem realiza palestras) é “palestrante“.

A fórmula do particípio ativo em latim deu origem às formas portuguesas:

  • -ante (mendicante)
  • -ente (presidente)
  • -inte (contribuinte)
  • -unte (transeunte)

São formas comuns a basicamente todos os idiomas que provieram do latim, como é caso (além do português) do espanhol, do italiano e do francês (chamadas de línguas neolatinas).

O interessante é que, no latim, essa forma de particípio presente, atuante sobre verbos ativos, simplesmente não muda — seja no masculino, feminino e neutro (o latim tinha três gêneros, ao contrário do português, que só tem dois). Isso se reflete mais ou menos numa outra fórmula: de modo geral, palavras terminadas em “-e” são “neutras”, no sentido de que podem ser masculinas ou femininas, dependendo do uso dos falantes em determinada época.

Palavras “neutras”

Note que “neutras” vem entre aspas. Isso acontece porque estamos aqui utilizando a palavra de forma leiga. Por “neutro” não queremos dizer que as palavras (em latim, em português e nas demais línguas neolatinas) não tenham gênero. Todos os substantivos têm gênero. Neste artigo, especificamente, utilizamos o termo “neutras” unicamente no sentido de que palavras terminadas em “-e” podem vir a tomar, nas línguas neolatinas, o gênero masculino, em alguns casos; ou o gênero feminino, noutros casos.

Por exemplo, às vezes, palavras terminadas em “-e” podem adotar qualquer dos gêneros no mesmo idioma:

  • o agente, a agente
  • o intérprete, a intérprete

É o que chamamos de substantivo comum de dois gêneros, ou simplesmente “comum de dois”. A mesma palavra é empregada em ambos os casos, e utilizamos o artigo para especificar o gênero da pessoa a quem nos referimos.

Em outros casos, um idioma adota um gênero específico, e outro idioma (também neolatino) inventa de adotar o gênero oposto. É o caso de “o leite” (masculino) em português, mas “la leche” (feminino) em espanhol. Já “el puente” é masculino em espanhol, mas feminino em português (“a ponte“). É prova de que palavras terminadas em “-e” podem cair para qualquer lado (masculino ou feminino). A escolha é mais ou menos arbitrária, dependendo do uso por dada população com o passar do tempo, e a escolha termina se solidificando no idioma em questão.

Conclusão

Palavras em português com terminações de particípio (-ante, -ente, -inte), por advirem de uma forma participial na língua-mãe (latim), mantiveram a mesma estrutura de particípio da língua-filha (português). Lembrando que o particípio presente não muda de gênero.

Visto que essas formas de particípio atuam sobre verbos ativos (amar, arder, contribuir), formando adjetivos e substantivos (amante, ardente, contribuinte), convencionou-se chamar esta estrutura de “particípio ativo“. Por isso, o verbo “falar” tem a forma participial ativa “falante“; o verbo “crer” tem a forma participial ativa “crente“; o verbo “constituir” tem a forma “constituinte“. Perceba que todas essas formas levam a forma masculina e feminina iguais:

    1. o amante, a amante;
    2. o crente, a crente;
    3. o constituinte, a constituinte.

De forma resumida, isso significa que, sendo formas de particípio (-ante, -ente, -inte) terminadas em “-e“, a forma no português, assim como em latim, é imutável, valendo para palavras tanto no masculino quanto no feminino. Por isto, defendemos aqui o uso de “(o/a) presidente“, independentemente do sexo de quem preside.

Abaixo, algumas das perguntas mais frequentes (F.A.Q.) sobre o tema. 

1. Já ouvi várias pessoas dizendo que, assim como “doutor”, “juiz” e “professor” admitem as formas femininas “doutora”, “juíza” e “professora”, também deveríamos adotar “presidenta”. Não seria discriminação adotar só a forma “presidente”? Afinal, dizemos “brasileiro” e “brasileira”.

Observe que nenhuma das formas citadas (doutor, juiz, professor, brasileiro, brasileira) possui terminação participial (-ante, -ente, -inte). São todas formas de puro substantivo/adjetivo — e não de particípio, portanto, não se confundem. Também no latim as profissões citadas acima aceitavam o feminino. A única construção que quebra uma regra gramatical da norma culta é a transformação de “-ente” em “-enta“. É uma violação das regras gramaticais porque algumas formas, como advérbios e particípios ativos, são imutáveis quanto ao gênero, tanto em latim quanto em português. Ou deveriam ser.

2. Mas já vi exemplos com “o chefe” e “a chefa”.

A palavra “chefe” pertence à chamada categoria “substantivo comum de dois gêneros”, ou simplesmente “comum de dois”. A terminação em “-e” torna desnecessário alterar a estrutura da palavra, de modos que não lhe é preciso impor a terminação feminina “-a” (afinal, não possui a terminação masculina comum em “-o”). Assim, “a chefa” deve ser evitado, utilizando-se a mesma forma no masculino e no feminino, empregando-se apenas o artigo correto para especificar o gênero do chefe (“o” para masculino, “a” para feminino):

  • o chefe
  • a chefe

Contudo, perçeba que, mesmo neste exemplo, em que “chefe” termina em “-e”, ainda não estamos tratando de uma terminação em particípio (que, neste caso, seria “chefiante“). Consequentemente, as formas “chefe” e “presidente” ainda não podem ser comparadas (pois uma tem forma de substantivo/adjetivo, enquanto a outra tem forma de particípio).

Em suma, a palavra “chefe” já traz em si mesma a possibilidade do uso de dois gêneros. É desnecessário modificar a palavra. Dito isto, pior seria modificar o particípio: alguém diria “chefianta“? “A chefianta é muita confianta“? Se ninguém (nem mesmo Dilma) diz “ela é muita persistenta“, por que usar “presidenta“? A regra é a mesma nos dois casos.

3. Mas já cansei de ver “cruenta”. Deveria ser “cruente”, então?

Não, porque “cruento” não é um particípio. A palavra vem do latim cruentus no masculino (cruenta no feminino, cruentum no neutro). Ou seja, a palavra é um adjetivo, não um particípio.

Como regra, substantivos geram adjetivos variáveis, que ganham o gênero da pessoa a quem se referem. Por exemplo:

  • calor: calorento / calorenta

  • frio: friorento / friorenta

  • sangue: sangrento(a) / cruento(a)

  • sarna: sarnento / sarnenta

Mas verbos geram formas participiais invariáveis, cujo gênero não muda:

  • amar: amante (quem ama — gênero invariável)

  • informar: informante (quem informa — gênero invariável)

  • ler: lente (quem lê — gênero invariável)

  • tenere (ter): tenente (quem tem, quem administra, quem está à frente de — gênero invariável)

  • concluir: concluinte (quem conclui — gênero invariável)

  • transitar: transeunte (quem transita — gênero invariável)

Ou seja, a forma participial ativa gera um nome para quem realiza a ação do verbo. No verbo “falar”, o particípio ativo cria um nome para quem fala: falante. A confusão acontece porque as formas adjetivas às vezes se parecem muito com as participais — da mesma forma que caro e calo em português se parecem muito para o falante nativo de chinês ou japonês. Mas é só como Denorex: parece, mas não é.

O importante aqui é compreender que substantivos e adjetivos comportam-se de uma forma; advérbios e particípios ativos, de outra. Por exemplo, em português, a palavra “muito” pode ser variável ou invariável, a depender da função  que exerce na frase. Se for advérbio, é invariável. Se for outra coisa (substantivo, adjetivo, pronome), é variável. Na frase “ele tem muitos carros”, vemos que “muito” pode variar a depender do substantivo: muitos carros, muitas casas. Porém, na frase “ele é muito bonito”, a palavra “muito” é invariável, porque age como um advérbio. Isso enseja certa confusão para o aluno brasileiro, quando tenta aprender outros idiomas que, ao contrário do português, diferenciam os dois casos. Embora as palavras sejam iguais em português, elas são diferentes em muitas outras línguas:


PORTUGUÊS
ESPANHOL
FRANCÊS
ROMENO
INGLÊS
Substantivo/Adjetivo
muito
mucho
beaucoup
mult
many
Advérbio
muito
muy
très
foarte
very

Com a tabela, fica mais fácil entender por que, ao dizermos “muitos carros” e “muito alto“, corremos o risco de imaginar que “muito” seja igual nos dois casos, como se desempenhasse a mesma função morfológica. Porém, o espanhol “muchos coches” e “muy alto”, como também o inglês “many cars” e “very tall”, prontamente nos mostram que em “muitos carros” temos um adjetivo (masculino plural);e em “muito alto“, um advérbio (invariável: muito altos, muito altas). As coisas, portanto, não são exatamente o que parecem. O mesmo acontece com “pouco” e “quase”, invariáveis quando atuam como advérbios. Daí construções como “muito bonita“, em que “muito”, operando como advérbio (invariável), não se flexiona de acordo com o feminino “bonita”. O mesmo acontece com os particípios ativos potente, determinante, coerente… e presidente. Essas categorias morfológicas não mudam de gênero.

As formas de substantivo/adjetivo, de um lado; e de particípio, do outro, são um pouco como irmãos gêmeos: parecem-se muito do lado de fora, mas, por dentro, cada um se comporta da forma que lhe é peculiar.

4. E por que dizemos “elefanta”, então?

Porque “elefante” não é uma palavra latina. É grega: ἐλέφας, ἐλέφαντος (eléphas no nominativo; e eléphantos no genitivo, que foi a forma herdada por nosso idioma). Sendo um substantivo grego, não se confunde com o particípio latino (que determina a regra de “presidente”). Vale lembrar que a forma feminina “aliá” também está correta. E cabe mencionar que a palavra “elefoa”, apesar de ainda muito usada, não é aceita por nenhum dicionário nem gramático de peso.

5. Como se explica a Lei nº 2.749/56?

Como essa lei é bem pequena, podemos nos dar ao luxo de transcrevê-la aqui na íntegra (mas o artigo mais importante é o primeiro):

LEI Nº 2.749, DE 2 DE ABRIL DE 1956

Dá norma ao gênero dos nomes designativos das funções públicas

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art 1º. Será invariavelmente observada a seguinte norma no emprego oficial de nome designativo de cargo público:

“O gênero gramatical desse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consagrados na lexeologia do idioma. Devem portanto, acompanhá-lo neste particular, se forem genericamente variáveis, assumindo, conforme o caso, eleição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões pronominais sintaticamente relacionadas com o dito nome”.

Art 2º. A regra acima exposta destina-se por natureza às repartições da União Federal, sendo extensiva às autarquias e a todo serviço cuja manutenção dependa, totalmente ou em parte, do Tesouro Nacional.

Art 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 2 de abril de 1956; 135º da Independência e 68º da República.

JUSCELINO KUBITSCHEK

Nereu Ramos

Por vezes, essa lei é apontada como fundamento da forma “presidenta”. Uma breve análise do normativo, porém, não parece sustentar essa tese. Aqui, a hermenêutica há de nos auxiliar, muito embora não precisemos nos aprofundar muito. Vejamos.

Em português, a formação dos gêneros segue uma regra simples. Ela dispõe que o masculino é o termo não marcado; o feminino, o termo marcado.

O que isso significa? Simplesmente, que a forma “de fábrica” (ou seja, não flexionada) do português geralmente é a que está no masculino; a forma flexionada, a do feminino. Ou seja, quando se vai ao dicionário buscar um substantivo (nome) ou adjetivo, é necessário procurá-lo no masculino, pois esta é a forma padrão, “default” (e o motivo de ser assim é papo para outro artigo, a ser escrito em breve).

Mas o que tudo isso representa para o legislador e para os nomes dos cargos públicos? Basicamente, que, como regra, são listados na forma não marcada, padrão (ou seja, no masculino). A consequência disso é que correríamos o risco de imaginar que no serviço público existiriam apenas procuradores, auditores, consultores, capitães, médicos, advogados, juízes, sempre no masculino (sendo que existem também procuradoras, auditoras, capitãs, médicas, advogadas, juízas). Daí a Lei nº 2.749/56 determinar que o gênero gramatical do nome do cargo deva acompanhar o sexo do funcionário a quem se refira. Ou seja, o objetivo é fazer menção ao gênero feminino quando o funcionário público for deste gênero, para evitar não apenas a discriminação, mas a própria inconsistência gramatical daí resultante. Afinal, não faria sentido usar o masculino “advogado” para se referir a “Maria Luíza” nos autos. Portanto, quando determinada mulher exercer o cargo de juiz, lei, regulamento ou documento oficial que porventura disponha sobre ela, deverá conter a palavra no feminino: “juíza Fulana“, e não “juiz”.

Perceba que a lei não cria a palavra “presidenta”, nem defende seu uso. Ela (a lei) simplesmente diz que, para as palavras que aceitem a forma feminina, sejam usadas essas formas (femininas), quando se fizer referência a mulheres em cargos públicos. É o caso de todas as palavras acima, que são de formação substantiva/adjetiva, e não de particípio: auditor, advogado, juiz, médico (etc.) não possuem terminação -ante, -ente, -inte; por isso, admitem a forma feminina. “Presidente”, que possui a terminação –ente e não varia de gênero, não se inclui na lista anterior; portanto, não estaria abarcada pela lei. Em outras palavras, não foi a vontade do legislador (interpretação teleológica da lei) dizer que “presidenta” existe e deve ser usada.

Não bastasse isso, a lei dispõe que a forma feminina dos cargos deve obedecer a preceitos:

  • tradicionais do assunto; e
  • consagrados na lexeologia do idioma.

“Preceitos tradicionais e consagrados”. Em outras palavras: a formação do feminino deve obedecer a norma culta. Esse requisito é tão importante que a lei chega a repetir o comando, ao dispor, logo depois: “[os cargos] devem [ir para o feminino] se forem genericamente variáveis“. Neste sentido, “presidente”, por ser uma forma de particípio ativo terminada em “-ente”, não é variável; logo, não se deve flexionar. Assim, manter o vocábulo “presidente”, rejeitando “presidenta”, está em total conformidade com a lei.

6. Que saco! “Presidente” é um machismo e ponto final. A palavra “presidenta” deve ser sempre usada quando se tratar de pessoa do sexo feminino.

Na verdade, é o contrário. Por isso, gastei tanto tempo explicando a origem da palavra e corri o risco de fazer você, leitor, perder a paciência quando discorri sobre substantivos, adjetivos, particípios e outras baboseiras gramaticais. O fato é que “presidente” já é, precisamente, a fórmula mais neutra e politicamente correta que existe. “Presidente” não é machismo. Não pode ser, porque nela não há marca de masculino. Para haver, a palavra teria que ser “presidento”, construção adjetiva que facilitaria a possibilidade de construir-se a forma feminina “presidenta”. 

Não é o caso de “presidente“, que leva uma forma de particípio, e não de adjetivo (presidento/a). Daí eu ter explicado que formas terminadas em “-e” no português são, por natureza, “neutras”. Elas podem ser usadas tanto no masculino quanto no feminino. E o melhor: não possuem marca de nenhum deles.

Em português, a forma do masculino geralmente1 é feita com o “-o” final (“brasileiro“); a forma feminina, com o “-a” final (“brasileira“). “Presidente”, que — mais até do que só em “-e” — termina em “-ante”, não possui forma de masculino nem de feminino (por apresentar forma de particípio ativo). É, portanto, por si só, a forma já mais politicamente correta que poderiam inventar. De fato, se só tivéssemos as palavras “presidento” e “presidenta” em português, é possível que viessem a inventar “presidente” para soarmos mais neutros. Se já temos justamente esta palavra, por que insistir em não a usar? Teremos que dizer agora “a marinha mercanta“? “Ela é uma pessoa muita consistenta“? “É uma marca determinanta“? “A matéria é pouca relevanta“? Quem for ao banco precisará abrir uma “conta correnta”? A cidade paulista deverá passar a se chamar “Presidenta Prudenta“? A mudança parece causar mais problemas do que os resolve. Há uma infinidade de advérbios e particípios invariáveis que utilizamos diariamente sem a mínima preocupação, e isso não produz qualquer efeito sobre nossa constituição sexual. De fato, jamais conheci motorista que se sentisse mais ou menos efeminado apenas por sua profissão terminar em “-a“; nem uma soprano que se sentisse masculinizada pela profissão terminar em “-o“. É preciso tomar cuidado para não confundir o gênero gramatical da linguística com o sexo humano da biologia. Eles não são a mesma coisa.

7. Então “presidenta” realmente está errado? 

Não. Deveria estar. Levando-se em consideração todas as regras não só do português, mas de sua língua-mãe, o latim, “presidenta” é uma anomalia morfológica que, em teoria, não deveria existir. No entanto, existe. Existe porque as pessoas falam a palavra. E a língua, apesar de ser regida por normas gramaticais, no final das contas, ainda é determinada pela boca do falante. É impossível “aprisionar” um idioma — não o conseguiriam os livros de gramática, nem os próprios gramáticos, nem quem acha que deveria ser de um jeito, enquanto é de outro. A língua é/está viva, e o uso do falante termina por moldá-la. A criatividade popular deu origem a uma nova forma (presidenta), que terminou por se integrar ao léxico (mesmo nunca havendo existido esquisitices como comedianta, cartomanta, aspiranta, intérpreta). Para espelhar o fenômeno cultural, a forma passou a ser aceita pelos gramáticos Celso Cunha, Evanildo Bechara e Luís Antônio Sacconi. Os dicionários Aulete, Houaiss, e o tradicional Aurélio já trazem o verbete em suas páginas. Até Domingos Paschoal Cegalla já admite que “presidenta é forma correta e dicionarizada, ao lado de presidente“. De modos que, hoje, ambas as formas são aceitas, e tudo fica, mesmo, a gosto do freguês. 

Entretanto, cabe aqui uma consideração, pois “presidenta” traz uma problemática inesquivável: a defesa da palavra com base na tese de machismo é discriminatória às avessas, já que não existe forma masculina para o vocábulo. Neste sentido, o efeito obtido é o oposto do desejado, por, ao menosprezar termo mais neutro e justo, introduzir um cisma2 no idioma. De fato, arrisco-me a dizer que ninguém jamais olhou para uma corrente e concluiu que precisaríamos chamá-la de “correnta” para evitar o machismo. O artista deveria indignar-se com a denominação, modificando-a para evitar a discriminação contra o masculino? Devem-se alterar também todos os advérbios e demais construções que não sejam conforme o que se deseja politicamente? Se correntes políticas opostas desejarem formatos diferentes, quem decide a forma que deve prevalecer? É perigoso confundir gramática com biologia.

Em face de tudo isso, e já como conclusão final, convido todos a considerar uma (importante) observação: se a língua é moldada por seus falantes, isto fatalmente significa que você, leitor, em sua própria capacidade de falante do idioma, também tem “a força” (para maior efeito dramático, sinta-se à vontade para ouvir na cabeça a musiquinha de He-Man ou de She-Ra). A vida é feita de escolhas, e a criatividade humana tem seu lugar, como também o tem a norma culta. Salvo em situações muito específicas, a forma “presidenta”, a exemplo de “chefa”, não nos parece trazer benefícios linguísticos nem culturais, a não ser de efeito cômico. Por isso, defendemos o uso de “presidente” no dia a dia. Se esta for também sua escolha, então quanto mais falantes utilizarem “presidente”, e menos falantes utilizarem “presidenta”, mais esta última forma cairá em desuso. Isto fará com que os falantes mais novos, por sua vez, sejam expostos à primeira palavra, aprendendo, sem esforço, um modo melhor e mais elegante de comunicar as ideias.

Não é que “presidenta” seja um mal tão grande — ninguém morrerá disso, e se algo tiver que lhe tirar o sono, melhor que seja por questões realmente importantes (como a saúde) do que pela preocupação com um reles vocábulo. Não se trata disso. É simplesmente que, a nosso ver, o termo comum (“presidente”) parece ser uma forma muito mais desejável de se perpetuar. Afinal, homens e mulheres, independentemente do sexo, podem ser intérpretes, mártires, clientes, consortes, médiuns, estudantes, confiantes, bendizentes, maledicentes, acachapantes, reconfortantes… e também presidentes. Consideramos desnecessário impor a criação de um feminino artificial a certas palavras que não apresentam qualquer semblante masculino. Essa invejável força criativa poderia ser utilizada em áreas outras, mais carentes do maravilhoso engenho humano.

Referências:

  1. Frise-se: geralmente. Há, óbvio, exceções.[]
  2. Por que “cisma” aqui é masculino? Esse artigo, um dia, virá.[]