“Aluno”: sem luz? Sem essa!

“Aluno”: sem luz? Sem essa!

Que aluno que ser sem luz?

Por algum motivo, existe entre os brasileiros (não sei se entre os lusitanos também) a impressão, bastante difundida, de que a palavra “aluno” significaria “sem luz”. Segundo esta teoria, o português “aluno” viria do latim “a-luminus“. Ou seja, “a-” (partícula de negação) e “luminus” (luz): “sem luz”, portanto.

A tentativa tem uma certa máscara de rigor científico, mas está bem distante da verdade. Há vários motivos para isso, e aqui veremos alguns deles.

Motivo 1 – A palavra já existe

O latim já tinha palavra para “sem luz”: obscurus. Que deu origem às palavras portuguesas “obscuro” e “escuro”.

Motivo 2 – Uso de partícula estrangeira

Mesmo que o latim quisesse uma palavra que traduzisse a ideia específica de “sem luz”, usando uma partícula negativa (a exemplo do inglês, em que podemos dizer “dark” ou, em tom mais poético, “lightless“), neste caso a partícula de negação muito dificilmente seria o prefixo “a-“. Isto porque este “a-“, especificamente, é uma partícula grega, não latina. O “a-” do latim significa outra coisa (ver Motivo 3 abaixo), de forma que, para realizar a negação, este idioma preferiria usar uma partícula de seu próprio jardim — por exemplo, “des-“. Assim, desilluminatus (“desiluminado”) seria uma opção muito mais natural e lógica para o latim do que alluminatus (que geraria o português “aluminado”, inclusive — não “aluno”).

Motivo 3 – Uso diferente do “a” em latim

Enquanto a partícula “a-” é utilizada em grego para transmitir a ideia de negação, ela faz o contrário em latim. O “a-” inicial é utilizado para reforçar uma ideia, transformando substantivos e adjetivos em verbos. Por exemplo, o substantivo lumen (“luz”) vira o verbo alluminare (“aluminar” ou, mais comum no Brasil, “alumiar”). Sem sombra de dúvida, você, como falante do português, já percebeu que nossa tendência para criar verbos a partir de substantivos e adjetivos é justamente adicionar à palavra um “a-“. Se o adjetivo é “baixo”, não ficamos satisfeitos em dizer “baixar”, mas insistimos em dizer “abaixar”. Se a palavra é “cautela”, então dizemos “acautelar”. Para “largo”, temos que “alargar”. Ou seja, inserimos um “a” para fazermos dos substantivos (e adjetivos) verbos. De fato, essa regra é tão forte para nós, falantes do “novo latim” (= “português”), que até nos próprios verbos que já existem mas não possuem “a” inicial, teimamos em inseri-lo — nestes casos, geralmente dando um novo significado à palavra. Por exemplo, já dizemos normalmente o verbo “mostrar”; no entanto, não raro ouvimos dizer que alguém quer “se amostrar”. Ora, “mostrar” e “amostrar” deveriam ser a mesma coisa. Mas o falante de português decidiu que se amostrar é coisa mais petulante. E daí mesmo foi que terminou vindo a “amostra” (aquilo que se põe “à mostra”). É o que se chama, em linguística, de alteração semântica.

Outro uso do “a-” latino é como forma compacta de “ab” ou “abs”, que significa “por”, “de” (origem) ou “depois”. De qualquer forma, o uso de “a-” como partícula negativa do grego não se pode confundir com o “a-” latino.

Motivo 4 – Palavra em português diferente

Mas vá lá, suponhamos que, mesmo assim, indo contra tudo o que lhe seria mais natural, o latim quisesse usar a forma do “a-” negativo grego com a palavra lumen. Neste caso, a palavra seria alluminosus, que desembocaria no português “aluminoso” (seguindo a forma que temos para “luminoso”, o que tem luz).

Ou seja, a ideia de que “aluno” provém de “sem luz” é uma etimologia estapafúrdia.

Sócrates diria que todo aluno tem luz dentro de si.

E de onde vem “aluno” então?

Vem do latim alumnus (e não alluminus), junção de “al” (que é o radical do verbo alere, “alimentar”) com a terminação “umnus“.

É que, para criar substantivos, o latim utiliza-se de várias terminações. Uma delas é “-umnus“, no masculino (“-umna” no feminino), que é “aquilo que exibe a ação do radical”. Por exemplo, “col-umna” (coluna) significa “a coisa que sustenta” (“col-” vem do radical indo-europeu *kel-, que significa “projetar”):

  • col-: sustentar, projetar
  • -umna: quem / aquilo que
  • columna (coluna): quem sustenta, aquilo que sustenta.

A terminação –umnus em latim vem do mesmo lugar que a terminação grega –omenos: de fato, pronunciam-se quase da mesma forma. Em grego temos, por exemplo, as palavras “fenômeno”, “epagômeno”, “estiômeno”, “nômeno”, “perispômeno”, “prolegômenos” etc.

E alere significa, mesmo, “alimentar”. Seu radical é apenas al-.

Portanto, “alumnus” nada tem a ver com “sem luz”, e significa, na verdade, “o alimentando”, ou seja, aquele que é alimentado (e não que é sem luz). Isto porque, na Roma antiga, o “alumnus” (o alimentando) era o filho adotivo — a boca extra da casa, digamos. E, de filho adotivo, a palavra terminou “adotando” (permitam-me o trocadilho) o significado de “estudante, aluno, pupilo”. Que é quem passa a se alimentar do saber. Não se denota qualquer falta de luz, portanto.

Para ilustrar, aqui está um trecho de Marco Cornélio Fronto (ou “Frontão”), preceptor do imperador Marco Aurélio:

Sed, quod alumnus meus ægre toleraret, valetudini meæ curandæ ita semper studuit.

Entretanto, embora meu filho adotivo tolerasse penosamente, sempre dedicou enorme atenção a minha saúde.

— Fronto, Correspondências, Ambr.424.

E aqui está um trecho de Cícero, utilizando “alumnus” no sentido de “quem se alimenta do saber” — ou seja, aluno, discípulo:

Quid ait Aristoteles reliquique Platonis alumni?

O que dizem Aristóteles e os demais alunos de Platão?

— Cícero, De Finibus Bonorum et Malorum, 4.26.72.

“Aluno”, portanto, vem do latim alumnus (do radical alere, “alimentar” + umnus, “aquele que”), literalmente “aquele que é alimentado” — ou seja, “filho adotivo”. Que, mais tarde, sofreu uma extensão de significado para “discípulo, aluno”. Não possui qualquer relação com “sem luz”.

Palavras Híbridas

Antes de terminar este artigo, vale lembrar que há certas palavras em que podemos encontrar a partícula negativa “a-” do grego ligada a uma palavra de origem latina. Essas junções de palavras gregas e latinas dão origem a palavras chamadas híbridas. É o caso de “televisão”, em que tele- vem do grego, e significa “distância”; e visão vem do latim, e significa… bem, “visão”. “E como é televisão em grego?”, você pergunta. “Τηλεόραση” (teleórassi), eu respondo. “Órassi” (uma variante moderna de “órama”) significa “visão” em grego — daí panorama, por exemplo). Ou seja, em grego, “televisão” é composta de duas palavras gregas.

Palavras híbridas, devemos enfatizar, são geralmente uma invenção recente (a exemplo de televisão), e não eram usadas na antiguidade, já que cada idioma tinha suas próprias regras e ainda não havia essa tal da globalização (daí por que o latim muito dificilmente escolheria a partícula grega para dar uma ideia negativa a uma palavra latina — o latim usaria suas próprias regras). Seria o equivalente a dizermos que “luzless” (“luz” em português + “-less” do inglês) é uma palavra comum para “sem luz” em português. Assim como não utilizamos o sistema morfológico do inglês, também o latim não utilizava o do grego.

Outro exemplo de palavra híbrida é “amoral”:

  1. “moral” é a forma positiva da palavra (algo positivamente ético e conforme os bons costumes);
  2. imoral” é a forma negativa da palavra (veja que o latim não escolheu a partícula grega para negar a moralidade, mas sim a partícula latina in-, que virou apenas i- no português); e
  3. amoral” é a forma neutra (que não é moral nem imoral, mas indiferente, em que a moralidade não se aplica).

E justamente “amoral”, sendo uma forma híbrida (partícula grega “a-” com o latim “moral”), é a palavra mais nova do conjunto. Adivinha quem inventou? Foi Robert Louis Stevenson (ele mesmo, o escritor de O Médico e o Monstro) que criou o vocábulo, para diferenciá-lo de “imoral”.

“Aluno”, portanto, não tem, mesmo, absolutamente nada a ver com “sem luz”. Significa apenas “aquele que é alimentado”. E que assim possa, aquela etimologia folclórica e enganosa, finalmente descansar em paz.