Gerundismo

Gerundismo

Gerundismo (Haggen Kennedy)

Gerundismo: confusão entre formalidade e duração temporal.

Você entra em uma loja e pede um item. A atendente diz:

Vou estar pegando pra você.

 Esse tipo de construção tem se popularizado na língua portuguesa, o que enseja algumas perguntas:

  • O que é esse tal de gerundismo?

  • O que há de errado com ele? (Se é que há algo de errado.)

  • Como ele se originou? De onde vem?

  • Como solucionar o problema? Quais são as alternativas ao gerundismo?

 Este artigo se debruça sobre possíveis respostas a todas essas perguntas.

Do início

Em frases como “vou estar pegando” e “vou estar enviando”, podemos observar que há a presença de verbos no tempo futuro (“vou estar”, ou “estarei”) e no gerúndio (“pegando”, “enviando”). Caso você não saiba o que é um gerúndio, não se preocupe: destrincharemos esses termos juntos.

Runner (Haggen Kennedy)


Gerúndio: ação continuada

Gerúndio

A palavra “gerúndio” vem do latim “gerere” — que primeiro se transformou em “gerer” e, por fim, chegou ao português como “gerir”. Na Roma Antiga, porém, “gerere” significava “ter consigo”, “carregar consigo” — daí ter se desenvolvido na ideia, em nosso idioma, de “cuidar de um negócio, administrar”, pois gerimos o que está em nossa posse (o que “carregamos” conosco). Em português, temos várias palavras surgidas deste verbo latino:

  • do infinitivo “gerere”, o próprio verbo “gerir”;
  • do substantivo “gestum”, o atual “gesto”;
  • e do particípio ativo “gerens, gerentis”, temos a forma participial ativa em português para aquele que gere: “gerente” — que, como já explicamos no artigo sobre “presidenta”, não muda de forma, sendo comum aos dois gêneros: o gerente, a gerente.

Na gramática latina, especificamente, o termo “gerúndio” designava uma categoria de palavras que “carregava consigo” uma ação sem delimitação temporal. Ou seja, essa classe de verbos conotava a ocorrência pura e simples de ações, sem marcar um momento inicial nem final.

Como o gerúndio latino é um pouco diferente do utilizado em português, não nos vamos delongar nele aqui. Basta sabermos que a ideia principal é essa: a de ação em andamento, sem demarcação clara de início nem fim. É exatamente essa característica que faz do gerúndio em português uma forma “aberta”. Veja:

  • Estou andando.

  • Estou comendo.

  • Estou curtindo.

  • Estou pondo.

Na frase acima, sabemos que “andando”, “comendo”, “curtindo” e “pondo” estão no gerúndio pela terminação –ndo. Em poucas palavras, o gerúndio marca uma ação (andar, comer, curtir, pôr) que está em andamento, em progresso, em curso, ou seja, uma ação que está acontecendo: não sabemos quando comecei a comer nem quando vou parar de comer. Só sabemos que estou comendo neste momento. Há uma duração.

É diferente quando dizemos “ele viu um pássaro”. O verbo “viu” marca uma ação passada, que já se esgotou no tempo. Essa ação começou e já se acabou: não há duração, foi algo pontual. A pessoa viu, ponto (não foi algo que durou uma quantidade ilimitada de tempo). Se quiséssemos mostrar duração/continuação no tempo passado, a frase seria “ele ficou vendo um pássaro”. Percebeu algo? Não é à toa que a palavra “vendo” é um verbo no gerúndio — mesmo no tempo passado. O mesmo acontece em “estou jogando videogame”: aqui, temos uma ação continuada (a pessoa está — e continua — jogando videogame). E, novamente, a mesmíssima coisa acontece em tempos verbais futuros: “estarei jogando videogame”. Não sabemos quando ela cessará o que está fazendo.

O gerúndio é isso: uma ação em andamento. Em português, construímos a ideia de “ação que está acontecendo” com a terminação verbal “-ndo”.

Gerundismo

Enquanto o gerúndio é normal ao português, o gerundismo, não: este corresponde a uma certa afetação (leia-se: exagero) em construções envolvendo a fórmula:

[verbo “estar”, geralmente no futuro]
[gerúndio]

Isto é importante: o gerundismo é o abuso do gerúndio de forma específica. Não se trata do uso indiscriminado do gerúndio, mas sim do abuso na utilização da fórmula [“estar” + gerúndio]. Ou seja, temos dois verbos:

1. “estar”, geralmente no futuro (“eu vou estar”, ou “estarei”; “você vai estar”, ou “você estará”; e assim por diante), somado a…

2. um verbo no gerúndio (ligando, repassando, enviando, mostrando etc.). Por exemplo:

FUTURO
Estarei
Vou estar

te
te
GERÚNDIO
ligando.
enviando.

Ou seja, para efeitos deste artigo, o gerundismo não se confunde com o mero exagero do gerúndio. O gerundismo é o uso equivocado da fórmula [“estar” + gerúndio]. Observe esta frase:

Quando eu estava caminhando, encontrei alguém comendo que vinha sonhando em acabar fazendo algo de bom da vida.

Aqui, temos muitos verbos no gerúndio (caminhando, comendo, sonhando, fazendo). O uso excessivo desse recurso torna a frase deselegante, mas isso não é gerundismo. Sim, é um abuso do gerúndio, mas o gerundismo, para efeitos deste artigo, é mais específico, abarcando o [verbo “estar”] seguido de um [verbo no gerúndio]. Observe:

Você pode também estar passando por fax, estar mandando pelo correio ou estar enviando pela Internet. O importante é estar garantindo que a pessoa em questão vá estar recebendo esta mensagem, de modo que ela possa estar lendo e, quem sabe, consiga até mesmo estar se dando conta da maneira como tudo o que ela costuma estar falando deve estar soando nos ouvidos de quem precisa estar escutando.”

— Manifesto antigerundista.

O parágrafo acima soa artificial, e a intenção do autor foi proposital — mas, por enquanto, nosso foco não é esse. O importante agora é visualizar que a mera presença de muitos verbos no gerúndio não equivale à prática do gerundismo (pelo menos não para fins deste artigo). Quando aqui falamos no gerundismo, referimo-nos a algo mais específico — ao uso incorreto da fórmula [verbo “estar”] + [gerúndio]. É importante ter em mente esta definição do gerundismo, pois sempre que falarmos em “gerundismo”, este artigo estará se referindo a essa definição específica (percebeu algo? Leia o artigo até o final e volte para saber por que “estará se referindonão é gerundismo).

Runners (Haggen Kennedy)


Gerundismo: afetação do gerúndio

Origens do gerundismo — algumas reflexões

A hipótese mais difundida é a de que o gerundismo tenha surgido a partir de más traduções de textos em língua inglesa. Antônio Suárez Abreu, por exemplo, em sua “Gramática mínima para o domínio da língua padrão” (Ateliê Editorial, 3ª ed., 2012) declara abertamente que o gerundismo provém de “traduções malfeitas da língua inglesa” (p.326).

Há quem discorde. José Augusto Carvalho, por exemplo, considera a hipótese “equivocada”. Para ele, o que teria originado o gerundismo seria “apenas o abuso de seu emprego fora dos padrões normativos de respeito ao aspecto verbal”.

Embora não possamos afirmar com certeza de onde surgiu o gerundismo, cabem aqui algumas reflexões importantes. A primeira é que textos anteriores à década de 90 simplesmente não aparentam trazer ocorrências desse vício de linguagem. Ou seja, o gerundismo (novamente: conforme definido neste artigo) mostra-se singularmente ausente em produções de língua portuguesa, e não se está falando aqui de autores consagrados apenas. Não. Falamos de todos os tipos de texto, inclusive revistas em quadrinhos, artigos de periódicos e até o simples falar cotidiano. Pode parecer estranho, baseado na realidade atual, mas é raríssimo encontrar uma ocorrência de gerundismo em textos que pré-datam o surgimento da internet.

A segunda reflexão está atrelada à primeira: antes da virada do milênio, há total ausência, por parte de gramáticas e manuais de português, do tema gerundismo. Encontrei pelo menos um (1) website declarando que o gerundismo é antigo e resultado de galicismo, mas o mesmo site, em referência ao tema em questão, confunde “gerúndio” com “gerundismo” (motivo por que tivemos o cuidado de definir estritamente, neste artigo, o que consideramos “gerundismo”). Pois não são a mesma coisa, e a antiga aversão a abusos do gerúndio (que, estes sim, resultam de galicismo, e que o próprio J. A. Carvalho oferece como evidência contra a hipótese da influência inglesa) não mantém relação com o gerundismo — este é fenômeno novo, referente especificamente ao uso incorreto de gerúndio precedido do verbo “estar”.

De fato, o gerundismo é tão novo que gramáticas de décadas anteriores, como a de Cegalla, Celso Cunha, Lindley Cintra e demais, são completamente silentes sobre o tema. Tampouco compilações como o “Dicionário de Questões Vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida, tratam do assunto. Manuais como a “Estilística da língua portuguesa”, de Manuel Rodrigues, idem. O mundo de língua portuguesa anterior ao novo milênio parece desconhecer completamente o fenômeno do gerundismo, como se nunca houvesse existido.

Minha terceira reflexão é admitidamente subjetiva, mas, nem por isso, menos importante. Quando era ainda jovem, nos anos 80, e deparei-me pela primeira vez com o futuro contínuo (também chamado de “futuro progressivo”) do inglês (I will be calling you), lembro-me de pensar: “consigo entender o que significa. É como ‘estarei te ligando’, mas ninguém fala assim”. A parte “ninguém fala assim” é importante, por indicar que esse tipo de construção ainda não era comum. Já mais velho, recordo-me de ler autores como Agenor Soares dos Santos e de me identificar fortemente com a capacidade que tinham de perceber que determinado texto em português era uma tradução da língua inglesa — mesmo sem ter acesso ao texto original (o que chamamos de “língua fonte”). Em outras palavras, o tradutor experiente consegue reconhecer, pela mera leitura de um texto, se ele é ou não traduzido. Conseguimos fazer isso porque sentimos o “gosto” de coisa traduzida. De fato, a depender da qualidade do texto, até o leigo consegue notar algo estranho ali.

É um exemplo prático de como o bom profissional, independentemente da área de atuação, consegue apontar imediatamente as falhas em seu objeto de trabalho — principalmente quando incorridas por outrem. O bom dentista sabe dizer se é de boa qualidade a restauração dentária feita pelo colega; o bom sapateiro sabe identificar o calçado de má qualidade; o bom engenheiro reconhece o projeto defeituoso apresentado por outro engenheiro. Da mesma forma, o bom tradutor enxerga imediatamente se o texto em português é fruto de tradução.

E por que isso importa? Porque frequentemente, antes mesmo de terminar de ler a primeira frase de um texto mal vertido, já é possível concluir se ele corresponde a coisa traduzida. Mesmo textos muitíssimo bem escritos deixam entrever sua proveniência de um idioma estrangeiro. Isso significa que certos conteúdos reportam (remetem) o tradutor imediatamente a um tipo de construção que, sendo incomum ao português, são facilmente reconhecidos como provenientes de outro idioma.

Isso ganha relevância especial quando compreendemos que, atualmente, é muito comum encontrar, na internet, conteúdos em português frutos de traduções de parca qualidade. O motivo para isso dá “pano pra manga”, e, no intuito de evitar um artigo desnecessariamente extenso (mais do que já é), deixaremos a conversa para outra ocasião. O importante aqui é demonstrar que:

  • há, online, uma enxurrada de influências da língua inglesa no material que consumimos diariamente em português;
  • o bom tradutor reconhece, de imediato, textos mal traduzidos (e frequentemente até os bem traduzidos) nesses materiais (incluindo-se aí o gerundismo); e que
  • esse conhecimento e essa experiência prática, embora subjetivos, não podem ser descartados, vez que correspondem à realidade factual de quem trabalha com isso cotidianamente.

Globalização (Haggen Kennedy)


A globalização afetou o português.

Nesse sentido, é importante apontar a força com que a influência inglesa no português explodiu com a globalização. Isso não acontecia, ou acontecia muito pouco (ou mais lentamente), na era pré-internet. Essa intervenção no português trouxe pontos positivos e negativos. Entre os relativamente negativos estão a enxurrada de palavras estrangeiras que vieram a substituir, sem necessidade, termos de perfeita correspondência em português. Entre os extremamente negativos está o gerundismo.

Evanildo Bechara, em sua “Gramática Escolar da Língua Portuguesa” (2010), diz que o gerundismo “se instalou na oralidade da linguagem moderna, especialmente comercial” (p.207). Essa afirmação corrobora a experiência de muitos tradutores, em dois sentidos:

1. Primeiramente, quanto ao aparecimento de ferramentas de tradução automática, como o Google Tradutor, que massificaram a atividade de tradução, frequentemente retirando o elemento humano da equação; e

2. A forma como empresas, na tentativa de diminuir custos, e achando-se num mundo globalizado, buscaram traduções ao português:

a) em ferramentas de tradução automática; e/ou

b) em falantes não nativos de português (que, por sua vez, muitas vezes utilizavam tradução automática).

Novamente: é assunto para outro artigo. O essencial é compreender que empresas de grande porte têm um volume considerável de manuais e diretrizes; que a tradução de volumes tão extensos incorre inevitavelmente em valores igualmente significativos; e que, na tentativa de baratear custos, nenhuma das opções acima leva a traduções de alta qualidade. Pelo contrário, empobrecem muito o resultado.

Pois bem, essas mesmas traduções, como seria de se esperar, terminaram por imiscuir-se na “linguagem comercial” (para usar o termo de Bechara), como aquela usada no telemarketing. Atendentes de call center (e incluamos parênteses aqui para lembrar que palavras como “telemarketing” e “call center”, por si só, já indicam a extraordinária influência da língua inglesa sobre o português no novo milênio) utilizavam as orientações e informações presentes justamente nesses manuais internos mal traduzidos. São conteúdos com traduções literais, artificiais, em que “I will be forwarding you to X” é vertido como “estarei te repassando para o setor X”. E onde foi parar esse novo modo de falar, com essas traduções afetadas? Ora, nos ouvidos de todos os brasileiros que alguma vez precisaram ligar para um centro de atendimento ao cliente. Ou seja, falamos aqui de uma divulgação nacional em massa.

Agregamos aqui, portanto, a soma de alguns fatores:

1. Ausência de gerundismo (conforme definido neste artigo, que não se confunde com o mero abuso do gerúndio) nas formas escrita e oral antes da década de 90;

2. Ausência de menções ao (e alertas contra a utilização do) gerundismo nas edições de gramáticas, manuais, guias (etc.) anteriores à década de 90;

3. Recente popularização da internet (inexistente antes da década de 90);

4. Recente popularização de ferramentas de tradução automática (inexistentes antes da década de 90);

5. Recente fenômeno da globalização, com suas respectivas tecnologias;

6. Introdução do gerundismo na linguagem comercial, como em centros de atendimento ao cliente (call centers, cujo próprio nome em inglês já é um forte indicativo da nova onda que se estava formando);

7. Bons profissionais de tradução notam o aumento de más traduções advindas de inteligência artificial e de falantes não nativos do idioma, simultaneamente à ocorrência do gerundismo;

8. A presença avassaladora do inglês no dia a dia do brasileiro, com suas consequências linguísticas (delivery, call center, 50% off, pensar fora da caixa, explosão da troca de nem” por “ou, o estapafúrdio “entregar” etc.)

Isoladamente, cada um desses elementos poderia sugerir algo diferente. Coletivamente, porém, estabelecem um indício forte, talvez (provavelmente) insuperável, de que esteja correta a hipótese (esmagadoramente majoritária) da influência da língua inglesa como causa do gerundismo.

Esse processo gera algumas consequências, que inicialmente podemos categorizar assim:

1. A parcela da população que possuía ao menos alguma intimidade com a língua culta deparou-se com esse novo modo de falar (gerundismo) e achou estranho. Muitas dessas pessoas não absorveram a mudança, ao menos inicialmente;

2. A parcela da população mais humilde (justamente a que mais se vê obrigada a entrar em contato com setores de atendimento ao cliente) também se deparou com a mudança. Entretanto, esta parcela tradicionalmente corresponde àqueles com menos acesso à educação e ao uso da língua culta. Como já dissemos em outra oportunidade, tendemos a interpretar certas formas linguísticas (principalmente quando provenientes de entidades que consideramos autoridades) como a norma culta. Assim, esta parcela da população absorveu o gerundismo como se língua culta fosse — afinal, do outro lado da linha estavam atendentes de São Paulo (que, por si só, já goza de certo status frente a estados de outras regiões) falando em nome de uma grande empresa (outra autoridade, que gosta de olhar para clientes como se estivessem abaixo dela).

Atualmente, com a internet e seus desdobramentos (como o Google Tradutor e, mais recentemente, ChatGPT, Claude e demais inteligências artificiais), é preciso ter em mente que, às vezes, sentimos um estranhamento não porque uma expressão estranha seja de norma culta, mas simples e realmente por ser, mesmo, estranha ao português. E aí está a encrenca: para saber em qual das duas categorias a expressão se encaixa (norma culta ou má tradução), é preciso ter conhecimento: ler, estudar e abrir o leque de informações. Quanto menos se conhece, mais corre-se o risco de interpretar mal a informação. E neste quesito estamos bastante atrasados — basta lembrar que aqui, no Brasil, ser nerd e estudar é geralmente motivo de escárnio.

A construção [estar + gerúndio] está sempre errada?

Como produto humano, raramente encontramos algo “100%” em matéria de idiomas. Portanto, não: a construção [estar + gerúndio] não é sempre um erro. Há situações em que o emprego desta fórmula é perfeitamente correto. E esta é a importância de entender a função do gerúndio: ele é que explicará quando cabe ou não a utilização da fórmula. Por exemplo:

1) Quando você chegar aqui, estarei fazendo palavras cruzadas.

2) Sua dúvida é pertinente. Estarei te passando para o setor correto.

Consegue notar alguma diferença entres as duas frases? Por que a primeira é considerada correta, enquanto a segunda é repudiada (o famigerado gerundismo)?

O grande elemento diferenciador das duas é o aspecto de duração.

Em geral, a função do gerúndio é transmitir o aspecto de duração, de continuidade da ação realizada (todo verbo é uma ação: ser, estar, fazer, comer etc.). Portanto, “estarei fazendo” (1º exemplo) e “estarei te passando” (2º exemplo), ambos, trazem uma ação continuada. O grande “porém” é que, no 2º exemplo, o falante não quis passar a ideia de ação continuada, mas sim, de ação pontual. Este, portanto, é o erro: a intenção de exprimir a ideia “X” utilizando uma forma linguística que passa a ideia de “Y”. Quando isso (exprimir uma ideia utilizando uma forma linguística inadequada) é feito por despreparo do falante, temos então a definição exata de vício de linguagem:

“Vícios de linguagem são incorreções e defeitos no uso da língua [resultantes] do descaso ou do despreparo linguístico de quem se expressa.”

— Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, Cegalla, p.634.

Para ilustrar o conceito de continuidade, podemos trocar o verbo “estar” por um verbo de continuação, como “ficar” (mas poderá ser outro verbo semelhante, a depender do que faça mais sentido na frase). Assim:

Estarei te passando para o setor correto:

Vou ficar passando você (o tempo todo) para o setor correto.

Você pode estar ligando para o médico, para perguntar:

Você pode ficar ligando (o tempo todo) para o médico.

Dessa forma, conseguimos enxergar o que significa o gerundismo: o atendente não quis dizer “vou ficar passando você o tempo todo para o setor”. Não, ele transferirá a ligação uma única vez. Da mesma forma, ninguém passará o dia ligando para o médico. Isso é feito uma única vez, de forma pontual. Mesmo que fosse necessário ligar mais de uma vez, a ligação continuaria sendo pontual, e não repetidamente, o tempo todo.

Em português, a fórmula [estar + gerúndio] é geralmente utilizada quando temos duas ações que acontecerão concomitantemente (ao mesmo tempo) no futuro. Por exemplo:

 “Nesse horário amanhã, estaremos chegando em Paris.”

Na frase acima, temos uma ação que ocorre enquanto ou durante (ou seja, ideia de ação continuada) a realização do outro componente futuro da frase. Temos aqui dois elementos:

1. O “horário” futuro; e

2. A futura chegada em Paris.

Ou seja, durante (continuidade) aquele intervalo de duração (o “horário”), realizaremos a ação (que se dará durante aquele horário) de chegar em Paris.”

Novamente, temos aqui dois elementos:

[acontecimento futuro “X”]
[elemento futuro “Y” que acontecerá durante o futuro “X”].

A palavra “durante” ilustra a continuidade que existe na ação. Ou seja, não é uma ação pontual, mas continuada, que se protrai no tempo. É essa ideia de continuação que indica que a segunda ação sempre se prolonga durante o outro evento futuro mencionado. Isso acontece mesmo se dividirmos as frases: 

— Você vai na festa semana que vem?

— Não, estarei viajando.

Aqui, a fórmula [estar + gerúndio] em “estarei viajando” também está correta porque temos duas ações futuras:

1. Uma festa; e

2. Uma viagem.

A viagem (2) acontecerá durante (terá continuidade, se prolongará durante) a festa planejada (1). Ou seja, durante todo o tempo em que a festa acontecer, a pessoa estará em viagem. A viagem abarca essa continuidade temporal. 

Agora, tentemos utilizar esse mesmo pensamento em frases com gerundismo:

Estarei te ligando.

Estarei te transferindo.

Você pode estar conferindo com seu plano.

Veremos prontamente que não fazem sentido:

1. Em “estarei te ligando”, qual é a continuidade futura existente durante a outra ação futura? Durante o quê, no futuro, essa ligação acontecerá, exatamente? A frase não traz continuação futura durante outra ação futura. O atendente não “estará ligando” no futuro durante alguma outra coisa que também acontecerá no futuro. A ligação é pontual, no aqui e no agora: “vou te ligar”, e não “vou ficar te ligando sem parar”.

2. O mesmo acontece com “estarei te transferindo”: durante o quê? Enquanto qual “outra coisa” acontecerá no futuro? Não há. A transferência é pontual: “vou te transferir”, e não “vou ficar te transferindo sem parar”.

3. Não é diferente em “você pode estar conferindo com seu plano”: não há continuidade futura enquanto outro elemento futuro acontece. A conferência é pontual: “vou pode conferir seu plano”, e não “você pode ficar conferindo, sem parar, o plano”.

Em inglês: futuro contínuo x futuro simples

É comum achar que a tradução é um sistema perfeito em que se verte, palavra por palavra, um texto de um idioma a outro:

The pen is red
A caneta é vermelha

Porém, a coisa não é assim tão simples. Observe:

The red pen
A caneta vermelha

Temos no inglês uma regra (adjetivo primeiro + substantivo depois) que é o inverso do sistema português (substantivo primeiro + adjetivo depois). Assim como essa, há um sem-número de outras normas linguísticas que não correspondem a nosso idioma, devendo ser vertidas de forma diferente:

  • Comer é bom.
  • Eating is good.

Enquanto usamos o infinitivo (comer), o inglês utiliza o gerúndio (eating, comendo). Isso acontece também com o future continuous, ou futuro contínuo, também chamado de futuro progressivo:

INGLÊS: I will be calling you.

TRADUÇÃO LITERAL: Eu estarei ligando pra você.

SIGNIFICADO REAL: Eu ligarei para você com certeza.

O QUE DIZEMOS NORMALMENTE: Te ligo hoje mais tarde para combinarmos.

Embora a primeira tradução seja literal, a ideia (significado) por detrás do futuro contínuo do inglês não corresponde à ideia do [estar + gerúndio] em português.

Em inglês, um dos modos em que o futuro contínuo (I will be calling you) se diferencia do futuro simples (I will call you) é que o primeiro caso dá certeza de que uma ação futura acontecerá, enquanto o segundo é um futuro intencionado, mas incerto. Justamente por isso, o futuro contínuo (will be + gerúndio) é comumente utilizado em frases demonstrando que algo ocorrerá em um futuro próximo. Veja alguns exemplos que ilustram melhor essa diferença:

FUTURO SIMPLES (incerto):

They will promote me to manager (one day).

Vão me promover a gerente (algum dia, não se sabe quando: é um plano, uma intenção).

FUTURO CONTÍNUO (certeza):

They will be promoting me to manager (on Friday).

Vão me promover a gerente (já é certeza — acontecerá essa sexta-feira).

A primeira frase (futuro simples) denota um futuro planejado e/ou intencionado, mas não certo. A segunda frase não é um planejamento nem uma intenção, mas uma certeza: a pessoa está para ser promovida, é algo que provavelmente está na iminência de acontecer.

Outros dois exemplos:

FUTURO SIMPLES (incerto):

You will meet someone who will change your life.

Você conhecerá alguém que mudará sua vida.

Como utilizamos o futuro simples (will meet), trata-se de uma previsão futura, sem certeza. Seria a frase utilizada em uma profecia ou por alguém tentando adivinhar sua sorte no tarô, por exemplo.

FUTURO CONTÍNUO (certeza):

You will be meeting someone who will change your life.

Você conhecerá (com certeza) alguém que mudará sua vida.

Aqui, o futuro contínuo (will be meeting) traz um futuro certo, o que elimina dúvidas — portanto, não se trata mais de profecia, de previsão futura. Trata-se de uma certeza, como um encontro marcado, possivelmente em pouco tempo (por exemplo, “hoje à tarde”). Note que a oração seguinte, “someone who will change your life” (alguém que mudará sua vida) traz uma previsão (tentativa incerta de adivinhar o futuro), devido ao uso do futuro simples (will change). Se usássemos “will be changing”, então, novamente, não se trataria de adivinhação, mas de certeza.

Por isso é que os falantes de língua inglesa costumam dizer em palestras, vídeos de YouTube, dentre outros, coisas como “today we’ll be talking about” (hoje vamos falar de…). Isso não quer dizer “hoje estaremos falando de”, mas sim que “falaremos [é uma certeza, e acontecerá agora, nos próximos 5 minutos] sobre…”. Não há correspondência formal (isto é, da forma verbal) entre o gerúndio do inglês (certeza sobre o que acontecerá no futuro próximo) e o gerúndio do português (ação continuada, geralmente a acontecer durante uma segunda ação na mesma frase). Ou seja, a forma verbal [futuro + gerúndio] em inglês não corresponde à forma [futuro + gerúndio] em português. Como já conversamos, só porque um idioma utiliza determinada forma, isso não significa que outro idioma (com regras diferentes) escolherá a mesma forma. Pelo contrário, às vezes uma língua prefere a palavra “X”, outra prefere a palavra “Y”. Às vezes, uma prefere usar um substantivo, a outra prefere usar um verbo.

Ou seja, no caso do gerúndio inglês, não se deve usar necessariamente o gerúndio em português. A fim de preservarmos a mesma ideia nas duas línguas, é necessário transformar os tempos verbais conforme o que for mais apropriado ao caso concreto. Digo “os tempos verbais”, mas esse fenômeno não está restrito somente a verbos, podendo ocorrer com substantivos, adjetivos, pronomes, expressões e até frases inteiras (lembra-se de como dizer “beber água faz bem” em inglês?).

Vale lembrar que isso não ocorre apenas entre português e inglês, mas com qualquer combinação de idiomas. Em grego antigo, por exemplo, raramente um tempo verbal corresponde ao tempo verbal de mesmo nome em português: frequentemente, é necessário traduzir um pretérito perfeito grego como presente em português; um pretérito imperfeito como perfeito; e por aí vai. As línguas são sistemas complexos, cada um(a) com suas próprias idiossincrasias. A tradução “palavra por palavra” é um método ultrapassado, anterior ao século XIX. Já avançamos muito desde então.

Utilizar, portanto, o gerundismo (“vou estar fazendo”) como tradução palavra-por-palavra, achando que equivale ao futuro contínuo do inglês (I will be doing) é como tentar encaixar círculo num quadrado: as formas não se coadunam. O gerúndio em português traz nuances de duração, de prolongamento; e não de pontualidade, muito menos de certeza. Quando desejamos imprimir a noção de pontualidade (“vou ligar”, e não ficar ligando repetidamente; “vou transferir”, e não ficar transferindo continuadamente), é preciso utilizar o futuro simples (“vou transferir” ou “transferirei”), e não a fórmula [estar + gerúndio], como em “vou estar transferindo”. Ao evitarmos o gerundismo nesses casos, evitamos o vício de linguagem, preservando justamente o desejo do falante: soar mais formal, em tom de respeito ao cliente, mediante a utilização da norma culta. Ou seja, se o atendente deseja utilizar o registro formal, então a solução é fácil: basta ensinar-lhe o tal registro formal, mostrando a fórmula correta. Sem preconceito, apenas com boa vontade — pois ninguém nasceu sabendo. E este blog, lembremos, serve para isso mesmo: abrir o conhecimento a todos.

Gerundismo: mais maléfico do que aparenta

As línguas humanas são um sistema complexo. Se abrirmos um livro de Gramática, veremos que o idioma engloba uma variedade de componentes, como fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, até estilística, dentre outros. A língua, portanto, é formada de vários elementos distintos que se somam para formar um todo complexo.

Lobo com ovelhas (Haggen Kennedy)


Gerundismo.

A compreensão disso é importante por vários motivos. Neste caso específico, esse conhecimento é relevante para entender a categorização de uma língua em determinada família linguística. Ou seja, por que o português é considerado língua neolatina? Por que o inglês é uma língua germânica? Nossa primeira reação é pensar que o português vem do latim porque as palavras são muito parecidas, o vocabulário é essencialmente o mesmo, com algumas modificações ocasionadas pelo tempo e pela mudança na pronúncia. Porém, mais da metade do léxico (o conjunto de todas as palavras) do inglês é composto de palavras de origem latina. Alguns estudos colocam esse número em cerca de 60% do idioma, sendo responsáveis as palavras de origem germânica por apenas 26% da constituição do léxico inglês. Palavras como “action” (ação), “velocity” (velocidade) e “occupation” (ocupação) são prontamente reconhecidas por falantes de línguas neolatinas, como português, espanhol, italiano e francês. Isso é até parte do motivo por que o brasileiro consegue brincar e criar neologismos em inglês, como “sacanation”.

Mas se o inglês tem um vocabulário tão latino, por que a língua é considerada germânica, e não neolatina?

Porque o que realmente categoriza uma língua como parte de determinada família linguística é sua estrutura interna, como ela organiza as ideias (e as palavras) internamente. De forma simplificada, poderíamos dizer que seria principalmente por sua morfossintaxe. Assim, por mais que o inglês seja repleto de palavras de origem latina, sua estrutura continua sendo essencialmente germânica.

Por exemplo, na frase “meu notebook tem um display de LCD com defeito”, temos muitas palavras em inglês. No entanto, sabemos que se trata de uma frase eminentemente redigida em português. O mesmo acontece em uma pergunta como “você prefere drive thru ou delivery?”. Neste último caso, há o adicional de que geralmente, nas línguas latinas, não há diferença entre frases na afirmativa e negativa: ou seja, não é necessário alterar a estrutura da frase para diferenciar uma afirmação de uma interrogação. Basta modificar a pontuação (na escrita) ou a entonação (na fala):

Afirmação: você vai à praia.

Pergunta: você vai à praia?

Em português, a única diferença entre essas duas frases é a pontuação final (na escrita) e na entonação (oralmente). Veja, entretanto, o que acontece em inglês:

AFIRMAÇÃO:

You will go to the beach.
(Você vai à praia.)

PERGUNTA:

Will you go to the beach?
(Você vai à praia?)

AFIRMAÇÃO:

You like chocolate.
(Você gosta de chocolate.)

PERGUNTA:

Do you like chocolate?
(Você gosta de chocolate?)

Vemos que não só a ordem das palavras muda, mas há um negócio estranho chamado “verbos auxiliares” (do, will), que não existem em português. Mudanças estas, lembremos, que são apenas uma dentre muitas outras características estranhas às línguas neolatinas (comuns, porém, às línguas germânicas, como alemão, sueco, norueguês, dinamarquês etc.).

O que isso significa para o português? Em tese, que a quantidade de “palavras soltas” importadas do inglês é irrelevante: a língua portuguesa sempre permaneceria inalterada em sua essência, no que realmente conta. Pois o vocabulário, por si só, não teria a capacidade de alterar a estrutura interna do português, a forma como nosso idioma organiza as ideias, a morfossintaxe. Ou seja, mesmo que, por influência inglesa, utilizemos incorretamente o verbo reportar, isso não desarranjaria a morfossintaxe portuguesa. Nossa língua continuaria preservada. Sempre diremos “caneta vermelha”, jamais “vermelha caneta”.

Eis que entra o gerundismo. Uma formulação capaz de alterar componentes gramaticais como nossa morfossintaxe e estilística. É um elemento externo (da morfossintaxe germânica) que muda nosso estruturamento de ideias. Assim, ao invés de dizermos “vou transferir sua ligação” (aspecto pontual futuro), dizemos “vou estar transferindo sua ligação”, na tentativa equivocada de utilizar o registro formal para comunicar tempo futuro (mas inserindo uma forma verbal com aspecto de “certeza”, da família germânica). Observe quantos elementos dissociados. O uso do gerundismo é maléfico por se camuflar como influência meramente lexical (de vocabulário), enquanto, às escuras, opera alterações de cunho morfossintático no idioma. É um “lobo em pele de cordeiro” que melhor seria evitado, por perturbar não só a dimensão vocabular, mas a própria estrutura frasal da língua portuguesa.

Alternativas ao gerundismo 

Como podemos substituir o gerundismo no português? De forma simples, basta utilizar o que já falamos no dia a dia:

GERUNDISMO
Vou estar te transferindo.
Você pode estar vendo com seu plano de saúde.
Vamos estar retornando sua solicitação.
Em que posso estar lhe ajudando?
SUGESTÃO
Vou te transferir.
Você pode verificar com seu plano de saúde.
Verifique com seu plano de saúde.
Vamos retornar sua solicitação.
Retornaremos sua solicitação.
Em que posso ajudar?
Posso ajudar em algo?
Posso ajudar?

Em outras palavras, basta trocar a fórmula [estar + gerúndio] pelo futuro simples (vou fazer / farei, vamos verificar / verificaremos, vou ajudar / ajudarei) ou até pelo presente/imperativo (transfiro, verifique, retornamos, posso ajudar). Simples, não?

Conclusão

Creio que conseguimos responder algumas perguntas importantes, como: o que é o gerundismo, de onde surgiu, se seu uso está errado e como melhor construir nossas ideias em português; além da diferença entre gerúndio e gerundismo.

Para recapitular, o gerundismo, nos termos deste artigo, caracteriza-se especificamente por construções incorretas da fórmula [estar + gerúndio]. Ou seja, é a utilização incorreta do futuro com aspecto durativo para descrever um futuro pontual, por achar que a fórmula [estar + gerúndio] equivale ao registro formal dessa ideia na língua portuguesa. Sim, é possível utilizar a fórmula [estar + gerúndio] do modo correto, mas a maneira incorreta de usá-la chama-se gerundismo.

É difícil afirmar com certeza de onde veio o gerundismo, mas a corrente majoritária (e a que me subscrevo) acredita ser o resultado de más traduções da língua inglesa. Porém, independentemente de sua proveniência, é construção a ser evitada, não apenas por constituir vício de linguagem (em que equivocadamente se tenta transmitir uma ideia por meio da forma morfossintática errada), mas também por atuar na língua de forma a extrapolar o espaço meramente lexical, incidindo sobre a própria estrutura basilar do idioma. Mesmo que um dia fosse considerada gramaticalmente correta, o formato [estar + gerúndio] é deselegante demais para exprimir a ideia de pontualidade. O mais recomendado é utilizar as alternativas oferecidas neste artigo. Com elas, você jamais será criticado por dizer “A” ao querer dizer “B”.

Reportar

Reportar

Quem já não ouviu o verbo “reportar” em português? A globalização e a adoção de novas tecnologias trouxeram muitas coisas boas, inclusive a tradução automática. Inevitavelmente, porém, o mau uso desses recursos terminaram por introduzir traduções rudimentares e equivocadas no português. Um desses erros foi a forma como verteram o inglês “to report”: ao contrário do que muitos acreditam, esse falso amigo não significa “reportar” em português.

Às vezes, o uso incorreto de termos pode prejudicar a compreensão.

Falsos amigos

Já falamos brevemente sobre isso num artigo anterior. É normal encontrar, em idiomas diferentes, palavras que se assemelhem bastante, embora não signifiquem a mesma coisa. Na década de 90, os divertidos comerciais do CCAA ganharam fama, mostrando várias dessas “falsas amizades”. Eram situações em que brasileiros tentavam se comunicar com falantes de inglês ou espanhol e sempre terminavam se encrencando.

Isso acontece. Entre inglês e português, há muitas palavras categorizadas como falsos amigos. São termos que se parecem muito um com o outro, e costumam vir da mesma raiz. Porém, em algum momento, terminaram por divergir no significado, e hoje denotam coisas distintas, malgrado sua semelhança. É preciso ter muito cuidado com essas palavrinhas, por transmitirem um conteúdo bem diferente daquele que conhecemos. Em inglês, por exemplo:

  • Actual: parece-se com “atual”, mas significa “verdadeiro, real”.

  • Actually: da mesma forma, esse advérbio não significa “atualmente”, mas “na verdade”.

  • Alias: não significa “aliás”, mas sim, “pseudônimo”.

  • Cigar: não significa “cigarro”, mas “charuto”.

  • Jurisdiction: parece-se muito com “jurisdição”, mas significa “competência”.
  • To report: não significa “reportar” (remeter, dar por causa), mas sim “relatar”.

Em português

Um dos falsos amigos, portanto, equivocadamente traduzidos do inglês foi justamente o verbo “to report”, que não é a mesma coisa que “reportar”. Sim, este último verbo existe em português, mas carrega acepções bem diferentes, baseadas na noção de remeter.

Por exemplo, um de seus significados é o de “fazer voltar”, “mandar de volta” ou “retroceder”, como nesta frase:

Essa música sempre me reporta à minha infância.

Quer dizer, a canção “manda de volta” — remete — a pessoa de volta à infância.

Desta acepção de “remeter” temos outra relacionada: a de “dever-se a algo”. Por exemplo:

Reportava sua sorte ao afinco.

Por isto, quer-se dizer que remetia sua sorte ao afinco, vale dizer, a “sorte” que tinha, em verdade, devia-se ao trabalho duro. É o mesmo caso de:

Reportou as boas notas da escola ao estudo diário com a mãe.

Em outras palavras, as boas notas da escola deviam-se ao fato de ter estudado com a mãe todos os dias. Assim como, no exemplo anterior, a “sorte” que tinha se devia, em verdade, ao trabalho duro. É outro modo de dizer “dar como causa”.

Também é possível utilizar a acepção de “remeter” com o significado de “fazer alusão a”, neste sentido:

Não parava de reportar os ouvintes ao mesmo assunto.

Quando nos reportamos a um assunto, estamos nos referindo a um assunto, quer dizer, estamos remetendo nossos ouvintes a um assunto específico.

Por fim, existe ainda outro sentido, muito menos utilizado em português, que é o de “conter, atenuar, controlar”. Por exemplo:

Lutou, debalde, para reportar a forte emoção.

No exemplo acima, quer-se dizer que a pessoa se esforçou (em vão) para conter a emoção; que tentou refrear, controlar o que sentia, mas que, por fim, não conseguiu.

Assim, o significado de “reportar” em português não é o mesmo de “to report” (relatar) do inglês. Por isso, seu uso desta forma é equivocado.

Aliás, o próprio substantivo “report” significa “relato, relatório”:

I will submit my report today.

Vou entregar meu relatório hoje.

Ninguém utiliza “vou entregar minha reportagem hoje”. Da mesma forma, o verbo: não devemos dizer “reportar”, mas sim, “relatar”.

Eles se parecem, mas não são a mesma coisa.

Num passado distante

Os significados que hoje temos em português assemelham-se àqueles de nossa língua-mãe, o latim. A palavra vem da união de “re-” com o verbo “portare”.

A partícula “re-” é velha conhecida nossa, encontrando-se em palavras como “refazer” (fazer de novo), “retocar” (quando “tocamos de novo” algo já finalizado, é porque desejamos corrigi-lo ou aperfeiçoá-lo), “reaprender” (aprender de novo) e por aí vai.

Já o latim “portare” significa isso mesmo que você está pensando: portar, carregar, levar. Ou seja, em latim, “reportar” significava “levar novamente, carregar novamente” ou “voltar novamente, retroceder novamente”. Por exemplo:

Lautusque ad hospitium Milonis ac dehinc cubiculum me reporto.

(E, já arrumado, volto à casa de Milo e vou-me novamente [me re-porto] para o quarto.)

— Apuleio, Metamorfoses, I.25 (última linha).

Ou seja, “me reporto” aqui tem o sentido de “porto a mim mesmo de volta”, “porto, carrego, levo meu próprio corpo” de volta ao quarto.

Outro exemplo:

Saepe oleo tardi costas agitator aselli vilibus aut onerat pomis, lapidemque revertens incusum aut atrae massam picis urbe reportat.

(Além disso, frequentemente, o carroceiro carrega os flancos do burrico, que já é lerdo, com óleo ou frutas baratas; e, ao voltar da cidade, traz [de volta; porta de volta — re-porta] consigo uma pedra de afiar incusa ou uma massa de piche negro.)

— Virgílio, Geórgicas, I.273-275.

Aqui, Virgílio diz que o carroceiro “reporta” (“traz/porta de volta”) à aldeia coisas adquiridas na cidade.

É do sentido de “portar novamente” que proveio o sentido de “remeter” (portar/mandar de volta) que temos em português.

Do you speak English French?

O português, por ser um desenvolvimento do próprio latim, herdou deste a palavra “reportar”. Já o inglês — uma língua germânica — adotou “report” a partir do francês (de onde vieram muitíssimas das palavras latinas que perduram no idioma até hoje).

Inicialmente, em francês, o verbo “reporter” (reportar, remeter, levar de volta) significava o mesmo que em suas línguas irmãs:

  • Português: reportar

  • Espanhol: reportar

  • Italiano: rapportare

Porém, por volta de 1260, o vocábulo ganhou o sentido alternativo, na língua francesa, de “redire(recontar, relatar) 1, que foi justamente a acepção que se solidificou no idioma inglês, ao incorporar a palavra proveniente do francês. Desde então, o inglês “to report” significa “relatar”. É desse novo significado, à propósito, que vem o português “repórter” (aquele que relata), oriundo do inglês “reporter”. Se olharmos com cuidado, veremos que só fizemos mesmo adicionar à palavra um acento agudo. É um calque tão direto que mantivemos até o morfema “-er” do inglês (teacher, lawyer, maker, reporter).

Conclusão

É fácil observar que o inglês “to report” e o português “reportar” se parecem muito. À primeira vista, tendemos a achar que são equivalentes. Porém, é importante ter em mente que são falsos amigos e não significam a mesma coisa.

No mundo globalizado atual, traduções de parca qualidade introduziram, no português, o termo “reportar” como sinônimo do cognato inglês. Isso terminou por se imiscuir em nosso cotidiano, e a palavra vem sendo usada com frequência em quase todo lugar, desde programas de GPS como o Waze (“radar reportado à frente”) até o discurso de atendentes (“se tiver qualquer problema, você pode estar me reportando”).

Muitas vezes quando tentamos “falar bonito”, caímos na armadilha de usar acepções provenientes de línguas estrangeiras (atualmente, o inglês), sem sabermos que não são naturais do português. Por exemplo, quando dizemos “reportar” em vez de “relatar”, ou quando usamos o gerundismo (“estarei te enviando”), isso é uma tentativa de manifestar a nosso interlocutor que estamos utilizando um diálogo mais formal. Afinal, ao falarmos com um cliente, desejamos tratá-lo com respeito.

Isso acontece porque associamos a formalidade a construções linguísticas mais incomuns do idioma — afinal, o que usamos no dia a dia é geralmente informal. Logo, formas incomuns no português equivaleriam à norma culta. Essa lógica não está errada, mas em alguns casos (e este é um deles), ela esbarra em uma grave problemática: a de que essas formas (“reportar”, gerundismo) são incomuns apenas porque realmente não fazem parte da língua portuguesa. Foram importadas forçosamente do inglês por maus tradutores e/ou por traduções automáticas, como o Google Tradutor (e, mais frequentemente, por “inteligências” artificiais como ChatGPT, Claude e outros).

Infelizmente, há muitíssimos casos em que empresas, na tentativa de baratear custos, utilizam-se de inteligência artificial, ou até de tradutores humanos que não são falantes nativos de português (infelizmente, isso acontece muito mais do que você imagina). Consequentemente, o Brasil recebe um enorme fluxo de material do exterior com péssima qualidade em nosso idioma.

Uma vez aqui no Brasil, por sua vez, como não temos um ensino de qualidade, tomamos essas traduções como sendo a tal norma culta. Os mais afetados são precisamente a camada mais humilde da população — ironicamente, a mais carente de traduções de alta qualidade. Ora, a camada mais humilde é a que menos teve (acesso à) educação, e justamente a que está na linha de frente dos textos com qualidade medíocre. Pior: sem jamais terem sido expostos ao alto padrão de uso da língua, exatamente pela rasa escolaridade. Sem um parâmetro sólido de comparação (p. ex., “não era assim que Machado e Alencar se expressavam — essa construção não é normal na língua culta do português”), tomaram abertamente para si essas traduções mal feitas, acreditando que eram de alta qualidade. E os erros terminaram incorporando-se ao português.

A partir de agora, porém, você já sabe que “reportar” não significa “relatar”, mas “remeter” (“relatar” é o significado do inglês “to report”). E já pode substituir frases como:

  1. Reporte o erro encontrado
  2. Vou reportá-lo ao supervisor
  3. Ele me reportou o que aconteceu
  4. Vamos reportar o ocorrido
  5. Estão reportando o caso na TV

por (por exemplo):

  1. Informe o erro encontrado
  2. Vou dar queixa a meu supervisor
  3. Ele me comunicou o que aconteceu
  4. Vamos relatar o caso
  5. Estão noticiando o caso na TV

Este segundo conjunto de frases traz formulações mais naturais ao português, ao contrário das traduções formulaicas e incorretas utilizadas no primeiro quinteto de exemplos.

Portanto, da próxima vez em que bater a vontade de dizer “reportar” no sentido de “relatar”, é só utilizar “relatar, informar, comunicar”, ou até “dizer, narrar, contar”.

Referências

  1. Récits d’un ménestrel de Reims, séc. XIII s., éd. N. de Wailly, § 114.[]
Pensar fora da caixa

Pensar fora da caixa

Você provavelmente já (ou)viu a frase “pensar fora da caixa”. A expressão, que provém do inglês e significa “pensar fora dos padrões convencionais”, na verdade é um estrangeirismo.

É fácil observar que se trata de um estrangeirismo ao realizarmos um simples exercício: se perguntarmos a um falante nativo de português o significado dessa tal “caixa”, o mais provável é que ele pense, literalmente, em uma caixa:

Caixa: seria esta a tal “box”?

Essa é a primeira pegadinha. Um dos sinais de que a expressão “pensar fora da caixa” é um estrangeirismo deve-se ao fato de que nossa noção de “caixa”, em português, é um pouco diferente da noção de “box” em inglês.

Vamos chegar lá. Mas, para entendermos tudo isso melhor, é preciso antes conhecer a origem da expressão.

Origem

A forma da expressão, como hoje a conhecemos, provém do antigo exercício de unir 9 pontos com linhas retas. O mesmo passatempo que viemos a conhecer ainda na infância:

Jogo de unir os nove pontos com uma única linha.

Esse joguinho tornou-se muito popular nos EUA em meados de 1900, e muitas revistas e jornais incluíam o exercício em suas edições.

Assim como na imagem acima, o exercício, nesses periódicos, trazia os pontos delimitados por um quadrado externo. A grande pegadinha estava justamente na regra: “ligue os pontos com 4 (ou menos) linhas retas, sem levantar a caneta do papel”. O bom entendedor percebia que não havia qualquer menção à delimitação (ou seja, ao quadrado) exterior. A solução, portanto, era desprezar as bordas da imagem, pautando deliberadamente sobre elas as linhas traçadas.

De fato, mesmo nos casos sem quadrado fisicamente demarcado — como nos desenhos que, quando crianças, fazíamos em folhas de papel —, tendemos a visualizar a delimitação de forma abstrata. O quadrado é criado mentalmente (e involuntariamente, de forma inconsciente) pela disposição organizada dos pontos. É como uma ilusão de ótica:

Ilusão de ótica: 3 ou 4 extremidades?

Em 1969, para ensinar a resolver o problema, Norman Vincent Peale, em artigo do Chicago Tribune (ed. 25/10/1969, p. 13) instrui:

Step outside the box your problem has created within you and come at it from a different direction.

Ou seja, era necessário extrapolar os limites do quadrado criado pelo problema, atacando-o a partir de uma perspectiva diferente. Pois o problema dos 9 pontos cria mentalmente em nós uma delimitação (o quadrado). Para solucioná-lo, é preciso enxergar as coisas de forma objetiva, sem os bloqueios mentais que nós mesmos criamos.

Com o passar dos anos, frases como “think outside the dots” (pense fora dos pontos) e “think outside the box” (pense fora do quadrado) foram sendo mais e mais utilizadas. De fato, tornaram-se tão comuns que, em 1976 (na Inglaterra) e em 1978 (nos EUA), elas já eram utilizadas em outros contextos, de forma desassociada ao jogo. Ou seja, terminaram por se integrar à cultura dos países de língua inglesa.

Aqui, percebemos dois elementos importantes: em primeiro lugar, a efetivação de um processo de integração da expressão à própria cultura inglesa; e, em segundo, o fato linguístico envolvendo uma nuance específica da palavra “box”. Esta, em inglês, possui conotação mais ampla que em português, englobando também formas bidimensionais. Enquanto “caixa”, em português, possui aspecto tridimensional (3D — vide a primeira imagem deste artigo), o “box” inglês pode muito bem ser 2D. De fato, é comumente utilizado nesse sentido, diferentemente do português.

Para ilustrar essa diferença, façamos outro pequeno exercício: se momentaneamente colocarmos de lado o inglês e pensarmos só em português, como um falante de nosso idioma se referiria às linhas pretas que delimitam cada uma das cenas nos quadrinhos abaixo?

Quadrinhos do Homem-Aranha

O próprio nome (quadrinhos) já dá a ideia do que o falante de português diria. Cada uma dessas cenas são envoltas por “quadrados” (ou “retângulos”), talvez até “painéis”. Certamente, o falante nativo de português, sem influência externa e utilizando o arcabouço exclusivo do próprio idioma, jamais chamaria esses traçados de “caixas”. Ao contrário do inglês, cujo falante nativo prontamente diria “boxes”, e não “squares” (quadrados).

Exatamente a mesma coisa acontece com as seções demarcadas por quadrados nos jornais:

Como também acontece com o quadrado em volta dos nove pontos. Em português, “quadrado”; em inglês, “box”:

Para traduzir, basta trocar as palavras

Muitos têm a impressão (errônea) de que, para traduzir, basta trocar as palavras de um idioma por palavras no outro idioma:

The pen is blue
A caneta é azul

É uma visão simplista do processo de traduzir. Basta mudarmos a frase para “the blue pen” para derrubar a tese:

The blue pen
A caneta azul

Neste exempo, já não há mais correspondência direta com o português: é necessário inverter a ordem das palavras (afinal, ninguém diz “a azul caneta”). Da mesma forma, na expressão (muitíssimo comum) “there’s no ‘i’ in team”, é impossível traduzi-la como “não há ‘i’ em equipe”, pois claramente há (em “time” também). Obviamente, portanto, não se trata apenas de “trocar as palavras de um idioma por outro”. A tradução é um processo complexo que tenta adequar textos de idiomas diferentes não só gramaticalmente (morfológica, sintática e estilisticamente), mas também culturalmente. Por vezes, até fonologicamente, como é o caso da poesia.

Nesse sentido, “box” nem sempre será traduzido por “caixa”. Esse fato ilustra bem uma das razões por que o tradutor evita verter palavras soltas. Em português, temos uma piada sobre o advogado que responde toda e qualquer pergunta com “depende”, mas algo semelhante ocorre no universo linguístico:

— O que é “whiplash” em português?

Depende. Em que contexto?

Isso acontece por (principalmente) dois motivos. O primeiro deve-se a uma característica comum das línguas naturais: a polissemia. Quer dizer, palavras — em qualquer idioma, não só no português — geralmente possuem mais de um significado, e o contexto apontará qual desses significados se busca no caso concreto. Por exemplo, em português, “manga” pode se referir:

1) à fruta; ou

2) à manga de camisa.

Em algumas regiões do Brasil, “mangar” também é verbo e significa “rir-se, debochar de alguém”. Neste caso, “manga” seria:

3) a terceira pessoa do singular do verbo “mangar”: ele(a) manga de alguém.

O segundo motivo é que idiomas diferentes se expressam de formas diferentes. Enquanto um prefere a palavra “X”, outro prefere a palavra “Y”. Enquanto um prefere usar um substantivo, o outro prefere usar um verbo.

Por exemplo, o incauto que lê “vaso” em espanhol pensa que significa “vaso” também em português, quando, na verdade, significa “copo”. Já “copo” se parece muito com o espanhol “copa” (que não tem nada a ver com a “copa” em português), que significa “taça”. Já “taza” em espanhol significa “xícara”. E o “vaso” em português corresponde à “jardinera” em espanhol (jardinera, o vaso grande para plantas; maceta, o vaso menor, para flores de mesa). Veja que confusão. Embora tenhamos as mesmas palavras, cada idioma os utiliza com significados diferentes.

ESPANHOL
vaso
copa
taza
jardinera/maceta
antecocina
PORTUGUÊS
copo
taça
xícara
vaso
copa

Outro exemplo, ainda mais ostensivo: “estou com saudade de você”. Temos aqui a troca imediata de um substantivo (“saudade”) por um verbo em inglês: “I miss you”. Ou seja, em inglês não se tem algo (“saudade”): falta-se algo (a pessoa querida). O significado é o mesmo, mas a forma linguística utilizada para se atingir o mesmo objetivo é diferente. As diferenças entre idiomas não se dão apenas em nível morfológico, mas em nível sintático, e até (por que não?) em nível estilístico. Cada língua tem seu modo característico de se expressar.

Isso também pode ser visualizado em frases mais complexas, principalmente se utilizarmos uma construção extremamente comum a nosso idioma. Por exemplo, “beber bastante água faz bem” traz uma estrutura tipicamente portuguesa. Como vertê-la ao inglês? O falante de português jamais conseguirá chegar na resposta certa se tentar traduzir a frase palavra por palavra. É que, assim como no exemplo do parágrafo anterior, aqui não há uma correspondência exata morfológica nem sintática. O inglês prefere uma construção bem diferente: “drinking plenty of water is good for you”.

Nos dias de hoje, esse erro é cometido às avessas. O tradutor do filme ouve o ator dizer “good for you” e prontamente tasca na legenda: “bom pra você” — quando a verdadeira tradução é “faz bem”.

Ross e Joey, no episódio “The One with Phoebe’s Uterus” (Friends).
Veja trecho no YouTube.

Da mesma forma, o mau tradutor verte “to think outside the box” como “pensar fora da caixa”. É um equivoco porque, ao contrário do inglês, que passou anos cozinhando a frase até que se tornasse uma expressão cultural desassociada do jogo, o português não passou por esse processo. A expressão jamais foi utilizada por um dos grandes escritores da língua portuguesa (independentemente do país, frise-se), pois ela obviamente surgiu a partir do precário decalque do inglês, no mundo globalizado atual. Não temos (nem nunca tivemos) a cultura da “caixa”, até porque a tradução de “box” nesse contexto seria “quadrado”. E assim como não dizemos “está chovendo gatos e cachorros” (do inglês it’s raining cats and dogs, cujo equivalente seria “está chovendo canivetes”) nem “custa um braço e uma perna” (to cost an arm and a leg — “custa os olhos da cara”), tampouco deveríamos dizer “pensar fora da caixa”. Não é parte de nossa cultura, nem corresponde à estrutura adequada ao português. Trata-se de frase compelida, por meio de tradução forçada, a entrar no idioma.

É que provérbios e expressões idiomáticas são fenômenos essencialmente culturais. Traduções literais (ao pé da letra), que já não fazem muito sentido normalmente, tendem a piorar em “frases feitas”. Como manifestação cultural própria dos países de língua inglesa, “to think outside the box” deveria ser vertido ao português de forma que se encaixasse melhor na cultura de nosso idioma. Algo que não vem acontecendo hoje devido à influência avassaladora do inglês sobre o português, aliado à escassez de bons profissionais no mercado e ao desprestígio da própria profissão, como um todo, no admirável mundo novo do Google Tradutor.

Esse fenômeno pode ser observado principalmente nas áreas de conhecimento que mantêm contato mais imediato com as línguas estrangeiras. Nas empresas, temos o jargão corporativo; nos call-centers (o próprio nome já corrobora a situação), o material de marketing telefônico (precisamente a origem de uma das maiores calamidades a assolar o português moderno: o gerundismo); na informática, os termos de tecnologia. Aqui, você provavelmente deve estar pensando em “mouse” e “CD”, mas é também deste último ramo que provém o termo “caixa de seleção” — evidentemente oriundo de “check box”. A prática é tão forte que até mesmo os verbos do inglês foram aportuguesados, e “tick the boxes” (assinalar os marcadores) virou “ticar as caixas”. Porque não bastava o decalque, precisávamos também de um empréstimo linguístico.

Conclusão

O que fazer, então? É errado usar “pensar fora da caixa”?

Depende.

Diz o ditado inglês que “language and culture go together” (língua e cultura são inseparáveis). Nesse sentido, o conselho seria evitar a expressão, por ser uma figura cultural inglesa que não faz sentido em português. Quem não mora nos grandes centros urbanos nem tem pronto acesso ao inglês e a anglicismos como esse, não sabe o que significa “pensar fora da caixa”. A expressão não faz sentido em nosso idioma — sequer sabemos visualizar a “caixa” correta a que se refere a expressão. Não admira que ela sequer exista oficialmente em nossa língua, sendo preterida tanto por dicionários quanto por gramáticas e manuais.

Por outro lado, seria complicado recriminar o sujeito que utiliza a expressão à mesa de bar. Primeiro, não há lei cominando pena a quem fala “errado”. Segundo, mesmo que houvesse, como se executariam essas leis? Quem falasse “nós vai” levaria multa? Ou seria caso de cadeia? Se multa, de quanto? Quem seria o órgão competente para executar essas leis? Pior: quem será intitulado o dono da verdade para decidir o que se classifica como “errado” na língua? Pois brasileiro nenhum segue as regras da gramática prescritiva a ferro e fogo: quem é do sul não se apega muito a conjugação, dizendo “tu vai” (e não “tu vais”); do Rio para cima, transformam “s” em “r” (mermo, mermão); e absolutamente ninguém deste país segue as regras de colocação pronominal (que, admitamos, são baseadas na prosódia do português europeu, daí nossa manifesta incapacidade em entender aquele sem-número de regramentos, com quantidade ainda maior de exceções). Qual foi a última vez que você se pegou utilizando a mesóclise? Ou que ouviu o caixa de supermercado usar “vós”? Mal sabemos a diferença entre “vir” e “ver” (conte quantas vezes você ouve diariamente frases como “se ela vir pra cá”, em vez de “se ela vier”). E ninguém parece ter a menor ideia da diferença entre “dizer” e “falar”. Imagine o quanto mais há que não seguimos dessas regras. Oficialmente criminalizar o uso do português “errado” gera mais problemas do que os resolve.

Assim, embora utilizar essas expressões anglicizadas não seja crime, o melhor, provavelmente, seria tentar evitar a expressão no falar informal. Mas sem se avexar. Afinal, é impossível evitar o giro do mundo, e língua que não muda nem sofre influência é língua morta. Se passar despercebido e a “caixa” aparecer, deixe estar. Mas em textos formais, como trabalhos escolares e universitários, monografias, teses, publicações em livros e periódicos, textos públicos e governamentais, e até mesmo em seu blog e/ou canal do YouTube (por motivos de influência sobre o grande público), o melhor seria mesmo utilizar outras expressões, como “pensar criativamente”, “pensar de forma inovadora”, “pensar fora dos padrões convencionais”, “ver além do óbvio”, “desconsiderar as limitações aparentes”, “pensar mais além”, “deixar de lado noções preconcebidas” e até mesmo “esqueça isso”. Há um número virtualmente ilimitado de opções, e a melhor será sempre a que se encaixar com mais perfeição ao caso concreto — ou, para usar a palavra mágica da tradução, ao contexto.